Passaram-se já algumas semanas do brutal assassinato de Marielle Franco. Propositalmente deixei passar um certo tempo, refreando-me do impulso natural de sentar e escrever, sempre que algum acontecimento me afeta. Confesso que desta vez o impacto foi grande, por isso talvez tenha me dado um tempo maior. Não conhecia Marielle. Nunca tinha lhe visto a belíssima fisionomia, nem a altivez e dignidade com que se denominava negra, favelada e lésbica. Soube depois que era uma especialista em fugir de estatísticas cruéis, pois mesmo nascida e criada na favela da Maré e tendo engravidado ainda adolescente, formou-se em Sociologia pela PUC-RJ e obteve mestrado em Administração Pública na UFF. Eleita em 2016 para uma vaga na Câmara, com a quinta maior votação do Estado, tornou-se uma vereadora e estava coordenando a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, quando foi executada com quatro tiros na cabeça, transfigurando-a, talvez numa tentativa inócua de desumanizá-la.
Em meio a um turbilhão de notícias com detalhes sobre o assassinato e a uma tímida resposta das autoridades de plantão, atônitos e ainda mexidos pela revolta dos familiares, amigos e representados políticos, não sabíamos, mas uma outra rajada de fuzil ainda estava por vir. Uma onda de mentiras e difamações passou a prevalecer e foi compartilhada avidamente em redes sociais, principalmente por pessoas com posições ideológicas situadas no extremo oposto do espectro partidário da filiação da Marielle. A revolta era contra uma suposta tentativa de se criar uma mártir (como se ela já não o fosse) e de um provável benefício a pautas de esquerda(?!). Por isso era necessário aviltá-la ainda mais uma vez. Como num passe de mágica, o julgamento foi realizado via web e da mesma forma que uma estuprada, de sainha curta à noite, passa muito rapidamente, de vítima a acusada, a vereadora brutalmente assassinada passou a ter responsabilidade sobre a própria execução.
Há muitos séculos não se queimam mais bruxas em praça pública. O poder feminino conquistou espaços enormes nos nossos dias. Porém, continua a gerar insegurança e, cercado de incompreensão, não raro descamba em violência, especialmente em sociedades extremamente desiguais e patriarcais como a nossa. Segundo dados da OMS, citados pela própria Marielle, dentre 83 países o Brasil é o 7º mais violento com as suas mulheres. São 12 assassinadas todo dia. Na sua luta legítima pelas mulheres negras da favela, extremamente afetadas pela violência urbana, Marielle colocou o seu poder e levou a sua extrema feminilidade à questão da segurança pública, onde o masculino ainda impera. Não foi perdoada e a ela não se deu nenhuma chance de defesa. No seu último discurso na Câmara do Rio perguntava:
“Onde estão as vagas da creche? Onde estão as educadoras e os educadores que não foram chamados ainda nos concursos para as escolas? Como ficam as mães das crianças revistadas nas favelas e como entrarão as médicas nos postos de saúde agora sob a Intervenção? “
Lutava, segundo ela mesma, “por uma outra forma (feminina?) de fazer política, dentro de uma república democrática”.
Uma sociedade que precisa separar sistematicamente, sejam comportamentos, posições ou pessoas – em preto ou branco, bem ou mal, a favor ou contra, direita ou esquerda, comunista ou fascista – não enxerga ou insiste em não enxergar os diversos tons e nuances da ampla gama de cores que a perspectiva feminina pode oferecer, e não consegue admitir como sua representante legal esse feixe de luz que era a Marielle. É essa mesma sociedade que instituiu omodus operandie tem delegado aos seus representantes a atual política de segurança pública. O fracasso dessa política e da maioria daquelas voltadas ao enfrentamento dos nossos graves problemas sociais (saúde e educação) afeta com muita intensidade a vida das mulheres, em especial as negras e faveladas, que Marielle representava. “As rosas da resistência nascem do asfalto……A gente recebe rosa, mas a gente vai estar com os punhos cerrados, falando do nosso lugar, falando de vida e resistência contra os mandos e desmandos que afetam as nossas vidas”: declarou ao receber rosas de um colega no plenário.
Mais do que uma representante dos direitos dessas mulheres mais vulneráveis – o que por si só já faz de sua perda um baque medonho na nossa pretensão de ter um futuro digno como sociedade – perdemos também uma magnífica representante do feminino na política. Denunciava abusos de policiais, enquanto defendia as suas viúvas. Amparava ao mesmo tempo mães de chacinados e de policiais assassinados. Protegia as mulheres negras e policiais diante de sua própria corporação, ainda extremamente machista. Sabia que tudo estava conectado e integrado, afinal não há separação nessa guerra entre irmãos.
Marielle vive na morte, e nunca deixará de estar presente, pois ela é o feminino, a sensibilidade, o paradoxal, a colaboração e a integração de opostos. A sua força invisível, complexa e multifacetada, está em nós mulheres. Ela é porque nós somos!
“Para nós, mulheres, luta é cotidiano. Nós sentimos todos os dias os seus reflexos: quando levamos os nossos filhos para a escola e não tem aula. Quando temos que trabalhar e não tem vaga nas creches. Sentimos quando somos desrespeitadas nos transportes. Desvalorizadas no trabalho. Assediadas nas ruas. Violentadas em casa. E entre os becos e vielas da favela sobreviver é a nossa maior resistência. Agora chegou a nossa vez. Vamos ocupar o nosso lugar na cidade e na política. Ter o que nos é de direito. Nossa voz muitas vezes silenciada terá de ser ouvida. Agora é pra fazer valer. Sou força porque todas nós somos. Sigo porque seguiremos todas juntas. Eu sou Marielle Franco. Mulher, negra, mãe, da favela. Eu sou por que nós somos!”
Trecho de sua campanha publicitária para a Câmara em 2016. Encontrado facilmente no YouTube, ao lado de seus principais discursos na Câmara, no período em que exerceu seu mandato.
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