Registro A: “tudo é número” (Pitágoras)
Na eleição para deputado estadual de 2018, em Pernambuco, o TRE registrou 22 zero-votos, quer dizer, os candidatos nem se deram ao trabalho de votar neles mesmos.
Interessante é que outros cinco candidatos tiveram só um voto, mas com um detalhe: três votos foram de postulantes não-eleitos e dois de suplentes. Faz diferença? Sim. Os dois suplentes são diplomados e, quem sabe, acontece com um deles o que se deu em Coivaras?
Em abril de 2012 a professora Constância Melo de Carvalho tomou posse na Câmara Municipal de Coivaras, pequeno município (3.842 habitantes) do Piauí, com apenas um voto, o dela própria.
A professora era suplente de uma coligação formada por quatro partidos: PP, PSDB, PTB, e o dela, o PMDB. Uma vereadora eleita por essa aliança, Raimunda Costa Santos (PSDB), e todos os suplentes da coligação, à exceção de Constância, migraram para outro partido fora da coligação, o PSB. Cassada a vereadora psdebista por infidelidade partidária, e sendo a professora Constância a única suplente da aliança, foi ela considerada apta a assumir vaga na edilidade coivarense com um único e autoconcedido voto!
(Além da questão da diplomação, a diferença principal entre um suplente e um não-eleito é que o partido ou a coligação deste último nem atingiu o quociente eleitoral (QE) e nem se credenciou a uma vaga parlamentar por sobras de voto. Portanto, todos os candidatos deste partido ou coligação são não-eleitos, independentemente de suas votações).
Registro B:periculum in mora 2
As coligações proporcionais sempre foram corretamente apontadas como a maior distorção do sistema brasileiro de eleições. Com a reforma eleitoral de 2017 elas estarão proibidas a partir de 2020. A medida é fatal para muitas siglas partidárias que dependiam de alianças para ter chances de ascensão ao Legislativo.
Agora, terão que ultrapassar sozinhas o QE se não quiserem participar dos pleitos apenas como meros figurantes.
Na eleição deste ano em Pernambuco para deputado estadual, por exemplo, apenas 12 das 33 siglas que disputaram o pleito conseguiram ter mais votos que o QE. Foram elas: PSB, PTB, PP, PT, PSDB, PR, PSD, DEM, SD, PSL, PSOL e PCdoB. Ainda assim, PSDB (94.307 votos) e SD (98.225 votos) fizeram a ultrapassagem do QE de 92.070 votos com notória dificuldade.
As cúpulas partidárias precisarão repensar suas estratégias de atuação, pois além do fim das coligações, a cláusula de barreira imposta na reforma de 2017 impõe severas restrições financeiras, de tempo de rádio e TV e de atividade congressual aos partidos com baixo desempenho eleitoral.
Registro C:proporcional x distrital
Desde a redemocratização do país que há pressão da classe política pela troca do sistema proporcional pelo majoritário (distrital puro, distrital misto e, mais recentemente, o distritão). Essa troca não faz o menor sentido, mas isso é outra história.
Imagine-se, à guisa de exercício, que na eleição de 2018 em Pernambuco a escolha dos deputados haja sido feita pelo sistema majoritário na modalidade distritão, em que a circunscrição eleitoral seria o próprio estado, um grande distrito de traçado subnacional.
Nos sistemas majoritários, são eleitos os candidatos que obtiverem maior número de votos, a chamada “verdade eleitoral”. Pois bem, para deputado federal, haveria apenas duas mudanças entre as 25 primeiras colocações: João Fernando Coutinho (PROS) e Kaio Maniçoba (SD), entrariam nos lugares de Tadeu Alencar (PSB) e Fernando Rodolfo (PHS).
Para deputado estadual os 49 primeiros colocados incluiriam Socorro Pimentel (PTB), Juliana Chaparral (PATRI) – esta, não eleita! -, Miguel Ricardo (PTB), Marcantônio Dourado (PP), José Humberto (PTB), e Augusto César (PTB).
Esses parlamentares substituiriam Romário Dias (PSD), Wanderson Florêncio (PSC), João Paulo Costa (Avante), Aluísio Lessa (PSB), Dulcicleide Amorim (PT) e Fabrizio Ferraz (PHS).
Depois da reforma eleitoral de 2017 o sistema proporcional de lista aberta corrigiu o que tinha de distorção grave. Então não se deve mais gastar energia com essa ladainha de troca de mecanismo de voto. A reforma política deve se concentrar alhures, como no financiamento de campanha, distribuição de tempo de rádio e TV, suplente de senador, etc.
Registro D:Juntas, inéditas, campeãs
As mulheres inovaram nesta eleição de 2018 em Pernambuco. Um grupo de cinco delas, abrigadas sob a denominação de “Juntas”, disputaram pelo PSOL uma “mandata”, feminino de mandato, para a ALEPE e foram bem-sucedidas: obtiveram 39.175 votos, 27º lugar entre as 49 vagas disponíveis.
As có-deputadas só não foram votadas em oito dos 185 municípios pernambucanos e, no principal deles, Recife, a capital, elas ficaram em quinto lugar do cômputo geral, com 20.672 votos.
O grupo é formado por Carol Vergolino, Joelma Carla, Kátia Cunha, Robeyoncé Lima e Jô Cavalcanti, esta última a representante legal do grupo junto à justiça eleitoral e à ALEPE. No entanto, embora Jô seja a deputada de direito, o grupo pretende exercer uma “mandata coletiva” de fato, compartilhando internamente decisões, remunerações, atividades, etc.
O ineditismo dessas mulheres vem embalado por uma singularidade: embora ativistas políticas, elas não tinham bases eleitorais, não tinham recursos financeiros, não tinham padrinhos políticos e nem tinham experiência legislativa.
A força da campanha – face a face e pé na estrada – residiu na criatividade, na inovação, na pregação de mudanças e de nova prática política e, ademais, na mensagem de tolerância, diversidade, preservação de direitos e maior, mais ativa e diferenciada participação feminina na política. Foram entendidas…
Registro E: que pasa?
Dos dez partidos mais votados para deputado estadual em 2014 (PSB, PTB, PP, PT, PDT, PMDB, PSDB, PR, PSD, PRP), apenas PP e PSD aumentaram suas votações em 2018, com destaque para o PP, que passou de 398.803 votos para 811.647.
Os demais tiveram menos votos agora do que antes, sendo que as maiores involuções couberam ao PDT (-74%), PMDB (-71%), PRP (-60%), PSDB (-60%) e PTB (-48%).
Uma conseqüência acaciana é que diminuíram seus tamanhos de bancada quem teve menos votos agora do que em 2014 (exceção feita ao PSDB e ao PT, que mantiveram o mesmo número de parlamentares) e aumentaram quem teve mais votos, novamente com realce ao PP, que passou de 4 para 10 deputados).
Como no resultado para deputado federal aconteceu praticamente a mesma coisa – somente três partidos entre os dez mais votados em 2014 aumentaram suas votações na eleição deste ano (PT, PSC e PDT) – a bandeira do sinal amarelo foi hasteada. Muitos partidos fortes ou estruturados estão perdendo espaço no eleitorado. Está mais do que na hora de interpretar o sinal…
Registro F:alienação e quociente
Havia grande expectativa de a alienação eleitoral (votos brancos, nulos e abstenção) aumentar nesta eleição devido às dificuldades do país, à desesperança do povo e ao descrédito da classe política.
Na eleição proporcional de Pernambuco em 2018 isso de fato aconteceu. Para deputado estadual a alienação eleitoral, também chamada de não-voto, passou de 29,7% para 34,2% e para federal, de 32,0% para 37,6%. Mais de um terço da população do estado, portanto, não quis sufragar o nome de ninguém para os Parlamentos local e nacional.
Esse fenômeno traz impactos para baixo nos quocientes eleitorais dos dois cargos, pois quanto maior o não-voto menores são os votos válidos. De fato, desde que o voto eletrônico foi implantado em todo o território nacional, a partir da eleição de 2000, os ditos quocientes regrediram pela primeira vez, conforme se observa na tabela abaixo:
QUOCIENTE ELEITORAL EM PERNAMBUCO (Pós urna eletrônica) | |||||
2002 | 2006 | 2010 | 2014 | 2018 | |
Deputado Federal | 152.517 | 167.571 | 178.008 | 179.329 | 173.215 |
Deputado Estadual | 77.756 | 86.347 | 91.824 | 93.930 | 92.070 |
Portanto, quanto menor for a quantidade de votos válidos de uma eleição, dado o número de cadeiras parlamentares, menor será o QEe vice-versa*.
Um QEmais baixo não significa necessariamente maiores chances para aquelas votações menores ou medianas, normalmente de agremiações componentes do pelotão de baixo.
Com efeito, há que se levar em conta as votações mais elevadas do pelotão de cima. Estas, quando confrontadas com o QEmais baixo, ou o superam mais vezes ou ficam com grandes sobras de votos. A disputa continua a mesma, relativamente (na interpretação popular atribuída a Einstein, incorretamente, de que “tudo é relativo”!).
Registro G: o quociente não é mais aquele…
É próprio dos sistemas proporcionais de eleições de parlamentares se defrontarem com a seguinte questão matemática: como dividir as vagas ou cadeiras de um Parlamento entre os partidos concorrentes de acordo com a proporção de votos por eles obtida?
Há vários métodos empregados na literatura especializada para assegurar a relativa equivalência entre votos conquistados e cadeiras obtidas. Todos eles necessitam de um ponto de partida, uma base, uma métrica, para proceder a essa transformação. No Brasil essa métrica é o QE**.
Antes da reforma eleitoral de 2017 o QErepresentava o número mínimo de votos válidos que cada partido ou coligação teria de ter para assegurar vagas no Parlamento (de acordo com o antigo § 2.º do art. 109 do Código Eleitoral).
Agora não se deve mais dizer isso, já que todos os partidos ou coligações que não atingem o QE podem participar da distribuição de sobras de votos e, eventualmente, ascender ao Parlamento (vide texto anterior: “Alguns registros…”).
Conceitualmente, contudo, o QEcontinua representando o número de votos por cadeira, ou o “valor” de uma cadeira em termos de votos.
Tome-se, à guisa de reforço argumentativo, o QE de 2018 para deputado federal exibido na tabela acima. Agora não se deve mais afirmar que 173.215 votos são o número mínimo de votos que cada partido ou coligação tem que obter para garantir vagas no Parlamento. Com a reforma eleitoral, pode-se conquistar vaga com menos votos que 173.215, desde que satisfeitos certos requisitos (vide o texto “ Alguns registros…”).
Por exemplo, a coligação PSOL / PCB, a que obteve maior votação no pelotão de baixo para deputado federal na eleição deste ano, recebeu 93.236 votos, bastante longe do QE de 173.215 votos. Nas cinco rodadas de distribuição de sobras esta coligação nem chegou perto de conquistar vaga, já que a última média mais baixa das cinco foi de 149.276 votos.
Então, para ascender ao Legislativo a coligação teria que ter tido mais de 149.276 votos, qualificando-se, assim, para ficar com a última vaga por sobras.
Em síntese, uma vaga continua a valer 173.215 votos. Esta é a referência, a métrica. A nova legislação permite que um partido ou coligação possa conquistar vaga com menos votos que isso. Para tanto, precisa ter votação nas imediações do QE(condição necessária) e que essa votação seja maior que a média mais baixa do processo de partição de sobras (condição suficiente).
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Maurício Costa Romão é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. [email protected]
*A explicação é que o QE é uma variável ex post (calculada depois de apurados todos os votos), que depende de várias outras: do eleitorado (EL), da abstenção (AB), do comparecimento ou votos apurados (VA), dos votos brancos (VB), dos votos nulos (VN), dos votos válidos e do número de cadeiras do Parlamento (C).
Em linguagem matemática simples: QE = f (EL, AB, VA, VB, VN, VV, C). Desde que VA = EL – AB e VV = VA – (VB + VN), agrande função acima pode ser resumida a QE = f (VV, C). Como C é predeterminada, tem-se então que, matematicamente, o quociente eleitoral é uma função dos votos válidos, dado o número de vagas no Parlamento: QE = f(VV).
**Uma base mais ou menos intuitiva é a razão entre os votos totais da eleição (votos válidos, no Brasil) e o número de cadeiras a preencher. Então, se VV for o total de votos válidos de uma eleição e C for o número de cadeiras do Legislativo, a razão VV/C representaria o número de votos por cadeira, ou o “valor” de uma cadeira em termos de votos. No Brasil essa razão é chamada de quociente eleitoral (QE).
Muito interessantes esses registros. E alguns divertidos também, em particular Registros A e D. Não tenho certeza que entendi QE: como é que partidos que não atingiram o mínimo para ter presença no Parlamento podem ficar com as sobras? E já que v. diz, em Registro C, que o ponto mais importante a focalizar em reformas futuras do sistema eleitoral é o financiamento de campanha, deveria acabar o financiamento público. Partidos são entes privados, que se financiem no setor privado, por contribuições de seus membros ou doações. Eu não vejo porque os impostos sobre toda a população devam ser usados para o Fundo Partidário ou o Fundo de campanha.