O tempo, para nós, humanos, é dividido em três momentos: o que passou, do qual temos apenas lembranças; o que estamos vivendo, o presente, em toda sua plenitude; e o momento seguinte, que, imaginamos, continuaremos a viver, mas não temos certeza, pois do futuro nada sabemos. Porém temos esperança de que serão dias melhores. A incerteza e a esperança, assim, são dois dos sentimentos que marcam, frequentemente, esse período em que se encerra um ano, e se inicia outro. Normalmente, em face do ano que se descortina, somos tomados pelo incômodo da incerteza e pelo consolo da esperança. Quando o presente é amargo, pesado, desconfortável na sua densidade, perdemos a esperança, ou temos dificuldade de alimentá-la. Esquecemos que, afinal, no início de um novo ano somos mais experientes e, portanto, mais hábeis para enfrentar as ameaças. Esquecemos que felicidade não é algo contínuo, e que sem o sofrimento e a infelicidade ela não tem qualquer valor. Sem fome, a comida não tem sabor. No ciclo da vida, a única permanência é a impermanência, é o fluxo contínuo do tempo. Como dizia Heráclito, na mudança é que residem as coisas.
Com o peso, o desconforto do nosso presente, marcado por uma política de assombração, em um mundo aparentemente tresloucado, com mudanças que não compreendemos, em meio a uma economia morna, é difícil ter esperança. E, neste fim de ano, pude constatar esse sentimento entre muitos de meus amigos. Eles têm suas razões. Vivemos uma situação pré-fascista. Não sei em que ocasião, Umberto Eco definiu a situação pré-fascista de maneira muito curiosa e ilustrativa para nós, pois “cola’ com o que vivemos. São estes alguns dos traços.
A idealização do passado, pensado idilicamente, e que se tenta loucamente recuperar, “retornando a este passado inexistente”. No nosso caso, o retorno a um regime autoritário, desenhado como um paraíso de ordem e progresso que nunca ocorreu.
O culto da tradição e a recusa da modernidade. Assim, por exemplo, tenta-se negar as novas formas de afetividade e de família, que surgiram ao longo do século passado. Tenta-se voltar às normas morais que não mais condizem com as novas situações criadas pela sociedade. Infantilmente, tenta-se impor às pessoas regras que não mais existem e, sobretudo, não mais condizem com as novas configurações sociais.
O medo da diferença, de onde se alimenta o racismo e o machismo. Como se fosse possível homogeneizar a sociedade, apagar suas distinções, que justamente fazem a sua riqueza. Esquece-se que é no confronto com a diferença do outro, pela alteridade, que descobrimos a nossa identidade. O outro, ao contrário do que dizia Sartre, não é o inferno, mas o paraíso. Graças a ele criamos nossa forma singular de ser. Descubro quem sou.
O uso ardiloso da frustação de grupos sociais que se sentem preteridos por mudanças tecnológicas, mercadológicas ou sociais. Por isso, o apelo de nossos governantes atuais aos que se sentiram, por alguma razão, preteridos pelos governos anteriores. Tanto a classe média que perdeu seu emprego com a crise iniciada em 2014, quanto a classe média mais rica que se sentia desconfortável com a ascensão dos mais pobres viajando de avião ou, mais grave, ocupando o lugar de seus filhos nas universidades federais. Por isso, elas são, atualmente, tão estigmatizadas.
A rejeição da crítica, do desacordo, daí a substituição da filosofia pela retórica, a substituição dos fatos por narrativas fictícias, a desclassificação do oponente, a argumentação violenta. Daí as tentativas de calar a imprensa, silenciar a mídia e impor a censura. Não existem mais fatos, apenas versões, narrativas fictícias.
O endeusamento do populismo, que nada mais é do que a proclamação do líder como aquele que define o que é bom para o povo, na medida em que ele, povo, não tem condições de definir. O que conduz à rejeição das instituições democráticas, que limitam o poder do salvador do povo. Nem nosso Congresso, nem nosso Judiciário são instituições impecáveis, muito pelo contrário, mas são fundamentais para garantir a nossa liberdade.
Finalmente, o empobrecimento da língua. Algo que nossos dirigentes impre”c”ionantemente adoram fazer. O que nos faz pensar em 1984, romance de George Orwell, no qual o Grande Chefe, a cada ano, publica um dicionário com menor número de palavras, inspirado no princípio de que, se as pessoas não sabem falar, não sabem pensar, nem compreender o que se passa em seu contexto.
Todos estes pré-requisitos do fascismo são traços presentes em nossa conjuntura, que alimentam o pessimismo, a sensação de que nada se pode fazer para reter os absurdos, as violências. Mas, elas não significam que o fascismo chegará, que a democracia falecerá. Elas apenas dizem da fragilidade de nossas instituições que, pelo menos ao longo de 2019, mostraram-se surpreendentemente fortes, apesar dos recuos. Elas dizem de quão delicada é a democracia e que, por isso mesmo, demanda cuidado e carinho.
Essas são reflexões inspiradas no novo livro de Domenico De Masi – O mundo ainda é jovem (Editora Vestígio), que nos lembra a frase do coreógrafo Maurice Béjart: Malgré la merde, je crois (Apesar da merda, eu acredito).
Aos amigos incrédulos, desesperançados, desalentados, posso apenas lembrar o princípio que rege nossas vidas, a impermanência. Tudo passará, sobretudo se soubermos resistir com inteligência e perseverança, sem ódio e sem intolerância.
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