Marco Aurélio Nogueira

WASSILY KANDINSKY: PAINTING “YELLOW-RED-BLUE” (1925).

A questão é simples. Se o presidente não governa, não preside coisa nenhuma, não tem ideias nem liderança, não combate a pandemia e debocha das desgraças por ela provocadas, além de tudo o mais que se sabe, então não há como ele permanecer no cargo. Faltam-lhe discernimento e base moral. Seus deslizes recorrentes estão a colidir frontalmente com a Constituição, além de ferir o bom senso e colocar em risco a população.

É uma constatação óbvia, lógica, irrefutável.

Por muito menos Collor e Dilma foram afastados. Nenhum deles ameaçava a democracia. Foram ineptos em termos administrativos, praticaram deslizes, Collor se atrapalhou com negociatas financeiras, Dilma perdeu a coordenação política. Nada além disso. Bem não fizeram ao exercício democrático do governo e ao Estado de direito, mas não agrediram instituições, não coagiram a imprensa, não tentaram meter a mão na Polícia Federal, não organizaram gabinetes do ódio. Caíram por incompetência.

Já com Bolsonaro há um alentado prontuário de crimes contra o Estado, a república, a democracia, a Constituição, a população. Seus eleitores não se dão conta, cegos que estão para a realidade dura dos fatos. A pandemia agravou a situação, mas os sinais de que estávamos a ser governados por um governo perigoso haviam ficado evidentes desde o início.

O rito procedimental da democracia representativa exigiu que tomasse posse um presidente eleito pelo voto popular. Foi um acidente do destino que o novo ocupante do Palácio do Planalto fosse minúsculo, muito menor que a cadeira majestosa que ocupa.

Outra parte da peça pregada pela Fortuna implacável é que Bolsonaro passou a governar sem oposição. Os partidos e correntes que a ele poderiam se opor estavam estraçalhados, talvez envergonhados por terem sido derrotados com facilidade por figura tão inexpressiva. A culpa, como se sabe, pode mortificar e tende a paralisar, sobretudo quando não devidamente processada. O vasto campo democrático se pulverizou. Uns se deixaram fisgar pela ideia de reforma econômica trombeteada por Paulo Guedes, outros permaneceram prisioneiros da retórica de agitação e outros ainda pelo desejo de vingança, que costuma cegar.

Com a sucessão de bobagens e malfeitos do governo, com sua maldade explícita, sua cruel indiferença perante as dores da população, com suas interferências indevidas em órgão estatais independentes, com as denúncias de Sérgio Moro, e a decisão do STF de investiga-las, o impeachment entrou no radar.

Bem, aí é a política. Ele renunciará? Não, ao que tudo indica. Poderá ser forçado? Sim, caso as FFAA exijam isso de modo categórico, no mínimo por orgulho próprio e por respeito à farda. Ou se o STF concluir a investigação e condená-lo. Somente assim os políticos agirão. Porque, ao menos por enquanto, não há maioria no Congresso para um impeachment. E se o Congresso não se posicionar a favor, nada de impeachment.

E por quê? Primeiro de tudo porque é ao Congresso que cabe organizar o processo e decidir se o presidente fica ou sai. Pode haver pressão da opinião pública, dos interesses organizados, da mídia, mas a bola estará sempre com o Poder Legislativo. Em segundo lugar, porque o Congresso é o que é. Está composto por muitos políticos medíocres, sem clareza, com apetite desmedido por cargos e vantagens. Há os evangélicos, os oportunistas, os ruralistas, os armamentistas. Há o DEM, que balança conforme o vento e não se envergonha de ser covarde. Há o PSL, que ainda não sabe se deixou de ser bolsonarista. Há o PSDB, que treme quando tem de tomar posição. Há o PT e seus satélites, o MDB. Há os políticos em geral, que se esgoelam para atacar a “situação” mas não fazem oposição de verdade, que desconversam e dissimulam, em nome da cautela.

Porque política é um exercício sempre complicado.

Porque, a rigor, não existe oposição no Brasil. Não há líderes, articuladores, formadores de opinião. Estamos num deserto. O PT e seus satélites ainda giram em torno de Lula, estão em busca de vingança e ressurgimento. O PSDB ainda não decidiu se faz oposição. O MDB é o de sempre. Os presidentes da Câmara e do Senado reiteram o silêncio em respeito à “responsabilidade”. Como disse Rodrigo Maia, questões como comissões parlamentares de inquérito (CPIs) ou impeachment do presidente Jair Bolsonaro “têm que ser olhadas com muita cautela” porque aumentarão as incertezas sobre a economia.

Não é bem assim. Pois a economia já está mergulhada na incerteza e quanto mais a agonia for prolongada pior ficará.

Para complicar dramaticamente o quadro, além da epidemia, é preciso constatar que a sociedade civil só pode agir, hoje, em termos virtuais. Os bolsonaristas são hiperativos nas redes, o que lhes dá a sensação de que têm força na sociedade. Os democratas, por sua vez, fazem um ruído pulverizado, sem unidade de pensamento e ação.

É com o que conta o bolsonarismo para sobreviver ou prolongar a agonia.

Bolsonaro sabe que está cercado. Pela opinião pública, pela mídia, pelos democratas, pelo STF. Cada mau passo que dá faz com que perca apoios sociais, como vêm revelando as pesquisas. Agora, quer espetar mais uma estaca no peito: o “Centrão”, gente que se move pelo mais puro interesse, indiferente a pleitos sociais, com frieza e cálculo, coisas que o restrito grupo parlamentar bolsonarista-raiz não sabe fazer. São entre 150 e 200 deputados, segundo estimativas imprecisas.

A ideia é abrir um flanco no Congresso, pondo pressão sobre Maia e Alcolumbre. Negociações foram desencadeadas com Roberto Jefferson (PTB), Valdemar da Costa Neto (PR), Ciro Nogueira (PP) e Gilberto Kassab (PSD). Além de cargos no governo, os morubixabas vislumbram a presidência da Câmara. Quando terminar a gestão de Rodrigo Maia, querem ocupá-la com o deputado Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo Palácio do Planalto. Algumas pérolas estão na mesa: o Banco do Nordeste, a Funasa, o DNOS, o FNDE, o Porto de Santos, e o olho se espichou para os Ministérios da Agricultura e da Ciência e Tecnologia. Ganhando isso, ou alguma coisa, o “Centrão” se comprometeria a blindar Bolsonaro contra as tentativas de impeachment.

A manobra pode funcionar, sobretudo no curto prazo. Mas é impossível confiar na fidelidade do “Centrão”. Mudando os ventos, ele se bandeará sem pestanejar. O relacionamento estará sobredeterminado pelo avanço da epidemia. Se as mortes continuarem a se avolumar em escala acelerada, não há como saber se o jogo político mais miúdo terá como se reproduzir. A urgência poderá inviabilizá-lo, impulsionada pelo pânico social. Rodrigo Maia já percebeu que a água pode chegar ao pescoço e ensaiou uma desaceleração: “a gente tem de tomar cuidado porque o açodamento e a pressa, em temas como CPI e impeachment, vão ajudar a que a questão do coronavírus, que já é gravíssima, ganhe contornos ainda mais graves na vida da sociedade”.

Coisas assim mostram como a situação é complexa, delicada, difícil de ser monitorada e ultrapassada. Há todo um País pela frente, um futuro impreciso, uma ausência constrangedora de lideranças.

Pressão, portanto, só se for feita por militares e juízes. Ou será que alguém acredita que manifestos, lives, artigos e reuniões virtuais terão força para mudar a realidade? Mas será que militares e juízes saberão agir com prontidão sem ferir a democracia, ou melhor, para salvá-la e dar uma resposta ao País? Ou também eles estão a pisar em ovos, com receios e cautelas? Se não forem eles os condottieri, poderão os políticos democráticos assumir a dianteira, como seria o adequado?

É verdade que não se pode apressar demais o processo, colocar o carro na frente dos bois, ao menos enquanto não se tiver clareza do dia de amanhã, não forem concluídos os acertos necessários, as costuras e conversações. O problema é que, enquanto isso, o País vai indo para o brejo, sem rumo, sem direção, com gente morrendo pelas tabelas.

Seria razoável deixar o presidente “sangrar” em cena aberta enquanto as operações executivas transcorrem por trás do trono? Um parlamentarismo branco, meio autoritário, meio democrático?

Não é razoável, mas pode ser o que acabe por acontecer. Relega-se o presidente ao segundo plano, às redes e aos fanáticos que o seguem, e toca-se o barco. Uma blindagem do governo contra o próprio presidente. Algo esdrúxulo, mas não inédito. Há casos e casos de governantes que não governam e nada fazem a não ser circular, dar entrevistas, assinar portarias.

Esse é um cenário que prevê que o Congresso, a Magistratura e as FFAA tenham interesse e consigam controlar o presidente. Para tanto, necessitam ter unidade de propósitos, coragem cívica e um programa de ação. Há algo que sugira isso?

Não há, ao menos por enquanto.

Além do mais, deve-se reconhecer que um presidente deixado a “sangrar” está nos cálculos daqueles que pensam que o principal problema do País não é Bolsonaro, mas sim o neoliberalismo de Paulo Guedes, ponta de lança da desmontagem da indústria nacional e da limagem atroz dos trabalhadores. Há também os que acham melhor ter um presidente fraco, pois ele chegará fraco às próximas eleições e será mais facilmente derrotado nas urnas. Há os inimigos de Moro. Há os militares que hoje dominam o Planalto e acreditam ter condições de controlar o presidente. Há os políticos, que temem ser ultrapassados pelos fatos que derivariam de uma renúncia forçada.

Acontece que o fiador de Paulo Guedes é o presidente. Isso tem sido repetido com todas as letras. Em 27 de abril, por exemplo, Bolsonaro garantiu que o ministro está mais forte do que nunca, é “o homem que decide a economia no Brasil, nos dá o norte, nos dá recomendações e o que nós realmente devemos seguir”. O ministro poderá ser substituído por algum outro “neoliberal” de plantão se o presidente assim o quiser. A ideia permanecerá.

Somente será possível questionar o neoliberalismo na economia se não houver Bolsonaro. Enquanto ele se mantiver, será esse o programa econômico. Até porque o bloco presidencial não tem outra opção, não sabe o que propor de diferente.

O perigo que nos ameaça vem da falta de governança, do atrito artificial criado entre alas, estados, pessoas e autoridades, da exasperação provocativa com que se atua durante uma pandemia extremamente grave, da falta de atenção, apoio e empatia com a população, da desinformação que só faz crescer. A guerra cultural e política posta em prática pelo bolsonarismo é um problema, talvez o principal problema do País, porque tudo a tem como parâmetro e é ela que organiza a correlação de forças. Não é o neoliberalismo, por mais que ele esteja ativo.

Sempre será necessário considerar que um presidente como o atual, mesmo que “sangrando”, continuará a usar o cargo para falar, envenenar, açular os seguidores, deseducar a população, desdizer hoje o que disse ontem. Suas redes e seu gabinete do ódio continuarão ativos. É ilusório achar que silenciarão e passarão a ter conduta republicana. Permanecerão combatendo sua guerra particular, sua luta política. Defenderão ainda mais seus interesses particulares.

Em aberto fica a questão de saber como o bolsonarismo reagirá a um eventual afastamento do “mito”. Haveria uma batalha social, campal, em plena pandemia? Ou o principal transcorrerá mediante arroubos e espasmos nas redes?

Como reorganizar a correlação de forças? Se nada for feito, com que cara as pessoas que pretendem ser sérias e responsáveis, que se preocupam de fato com o País e respeitam suas glórias, seu povo e suas tradições, responderão perante a História?

Quem, afinal, colocará o guizo no gato?

O repto é moral, ético, cultural. Político, com “P” maiúsculo. Não é eleitoral, nem econômico, nem administrativo, embora também tenha muito de cada uma dessas coisas. As cartas estão sendo embaralhadas. O jogo precisa avançar.