Em nome do bom-senso e da cautela, não se deve confundir as Forças Armadas como instituição com os ministros militares de Bolsonaro. O tronco é um só, mas os galhos são diferentes.
No entanto, é impossível sustentar que as patacoadas ministeriais e as barbaridades de Bolsonaro não estão a respingar na instituição. Estão. Respingam e as sujam de sangue, dado o caráter criminoso das ações governamentais tanto na área sanitária e ambiental, quanto na área da educação, isso para não mencionar as relações exteriores.
Não é por outro motivo que setores da alta oficialidade estão deixando vazar que a tragédia do COVID-19 pode representar a formação de um “Vietnã brasileiro” para as FFAA, uma esparrela de que os militares não sabem como sair.
A passividade da instituição chama atenção. Quanto mais deixam a situação avançar, maior é o desgaste, num processo de corrosão da identidade e da imagem que os militares procuraram construir a partir da redemocratização. Salvo melhor juízo, a cúpula das Forças Armadas, nas últimas décadas, trabalhou para dissociar a instituição de uma de suas vertentes mais expressivas, a de que estariam elas sempre prontas para intervir no jogo político e “consertar” o que os políticos civis faziam de errado. A tradução prática e teórica dessa vertente foi a absorção, pela caserna, de um espírito salvacionista e de um autoritarismo arraigado, em geral associado a uma ideia não muito precisa de defesa nacional.
O fato também repercutiu na vida política, fazendo com que a mentalidade positivista, hierárquica e autoritária dos militares se infiltrasse por todos os poros da administração pública e do Estado. A sensação de que a política estaria sempre sendo “tutelada” não contribuiu para que se generalizasse uma cultura democrática e republicana no País.
O trabalho de levar o militares “de volta à caserna” foi, em boa medida, bem sucedido. O recolhimento institucional das FFAA permitiu que se abrisse um período de tranquilidade na vida nacional, no correr do qual os civis exerceram sua atividade política com liberdade, partidos de esquerda chegaram ao poder e as instituições se sustentaram sem grandes abalos, apesar de crises localizadas e do impeachment de Dilma Rousseff.
Em que pese, porém, esse clima geral bastante favorável, o País não incrementou uma agenda reformadora. Equacionou a inflação, organizou programas de renda e proteção social, dinamizou o consumo popular, mas a estrutura do Estado permaneceu a mesmo, seja como aparelho administrativo, seja como formulador de políticas sociais ativas, seja enfim como expressão de uma hegemonia.
Perdeu-se uma oportunidade.
Aí veio a tormenta bolsonarista, nascida e crescida no bojo da desorganização dos democratas, processo derivado do esgotamento do ciclo social-democrata de 1995-2008 (PSDB, PT) e das turbulências socioculturais promovidas pela transição para a vida pós-industrial, digital. As manifestações de 2013 foram um sinal claro de que algo não ia bem nas relações entre Estado político-administrativo e sociedade. Os agentes políticos, partidos, parlamentares e governantes, porém, não souberam decifrar o enigma e foram mergulhando na crise. Terminaram por ser tragados pela sociedade.
O desempenho ridículo das forças democráticas nas eleições de 2018 foi o ápice dessa crise.
O governo Bolsonaro trouxe de volta o que parecia adormecido nos porões da sociedade, radicalizando todas as nossas más tradições e temperando-as com um ódio discriminador e preconceituoso que não era usual. Para complicar ainda mais, tentou instituir uma “governança antissistema”, promovendo a desorganização geral das políticas públicas e das práticas governamentais.
As Forças Armadas olharam de longe essa situação. Mas, de seu interior, grupos de interesse se atiraram com avidez sobre as sinecuras e os espaços governamentais, dando efetiva sustentação às diatribes irresponsáveis de Bolsonaro. Formaram um colegiado informal que, em termos práticos, passou a coonesta o que o governo faz de antissocial e antinacional. Militarizou-se o gabinete presidencial sem que houvesse qualquer ganho em governança, muito ao contrário.
Os militares não têm, portanto, razão de reclamar quando o ministro Gilmar Mendes, do STF, os associou à inépcia sanitária e aos crimes de Bolsonaro. A falta de uma política para combater a pandemia aproxima-se efetivamente de um genocídio, com mortes que chegam a 80 mil sem perspectiva de diminuição imediata e com a completa ausência de uma estratégia para proteger a população mais vulnerável.
O ministério da Saúde, que deveria ser o eixo da política de gestão da pandemia, é um paquiderme inativo comandado por militares. Seu titular é um interino, general da ativa, segundo o presidente um “predestinado”. Sua expertise é cuidar de suprimentos militares. Seus principais assessores também são do Exército. Nenhum deles conhece a Saúde Pública e o SUS. Seguem as ordens do presidente e caminham de costas para a ciência.
A facção que ocupou o Planalto aliou-se a um governo assumidamente “ideológico” e engajado, que vê “inimigos internos” o tempo todo. São militares que traíram o compromisso constitucional de neutralidade política.
A jornalista Rosângela Bittar foi precisa quando escreveu, no Estadão de 15/7/2020, que “em lugar de abespinhar-se com a crítica à conivência com o extermínio que a covid-19 vem operando, as autoridades militares, se não têm poder para convencer o presidente a fazer o certo, deveriam podar sua ligação com o errado. Reagindo como reagiram, passaram o recibo da conta que Bolsonaro lhes quis aplicar. Inclusive escudando-se no princípio de que interino no comando de uma escrivaninha de gabinete não pode ser acusado de nada. Todo o governo é sócio da chacota que atinge o Brasil em escala mundial. Os militares mais ainda porque aparelharam o ministério da vida. Ao criar uma nebulosa interinidade para o Exército, Bolsonaro esconde-se, escarnece da população e do emprego adequado da força”.
É fato que a instituição permitiu que se formasse um governo militarizado que não fala em nome dela mas transfere para ela boa carga de responsabilidade. Agora, está sem saber como sair da situação. Se correrem e deixarem o barco seguir, as FFAA ficarão com o ônus quase todo, já que o bolsonarismo é uma “ação”, não uma organização que possa ser claramente responsabilizada. Se intervierem, retomarão a vertente autoritária que as “empoderou” mas que, ao fim e ao cabo, não lhes foi propriamente benéfica, nem muito menos contribuiu para reforçar a democracia entre nós.
Resta saber se as Forças Armadas terão capacidade para abraçar a estrada da negociação, da tolerância e da moderação, que é por onde será possível encontrar uma saída para a tragédia que afeta a Nação e conspurca a imagem militar. Ou se, em sentido oposto, continuarão a coonestar o desgoverno e a deixar que a sombra do poder militar paire sobre a República.
O que não se coaduna com o espírito patriótico de que se orgulham os militares é a indiferença, com a qual se endossam os crimes cometidos por um governo flagrantemente incompetente e que a eles se reporta sem pedir licença.
Infelizmente o autor não toca no fulcro do problema. Os militares ocupam lugar de de destaque no aparelho de estado, devido ao beneplácito geral das elites civis. A presença militar não é causa, mas consequência de uma elite civil que não está interessada em estabelecer um regime democrático. Contenta-se com uma semidemocracia, outro nome para democracia eleitoral.