O que nos transforma em profissionais de nível superior é a nossa capacidade analítica. Somos também técnicos: aprendemos a aplicar procedimentos adequados a circunstâncias determinadas. Mas nosso papel principal não é conhecer e aplicar receitas. Nosso papel é superior: é desenvolver e formular receitas. É ter capacidade analítica para entender a realidade, sempre nova e mais complexa, e propor soluções criativas para resolver novos problemas e enfrentar novas oportunidades.
Somos formados para entender, para modelar novas realidades. E para esse entendimento temos duas ferramentas vitais: a abstração e a lógica. Vejamos o que Darwin diz a respeito: “Ninguém pode ser um bom observador se não for um teorizador laborioso”. Com esta frase nosso evolucionista quis advertir que não basta ficar ao nível dos fatos, das aparências. É necessário entender o que está acontecendo. Buscar identificar as relações de causa e efeito que explicam os fatos. Darwin, que era também botânico, criticava os colegas do seu tempo, por restringirem seus estudos à minuciosa descrição das plantas. No seu esforço teorizador ele, entre outras contribuições, esclareceu o funcionamento da sexualidade nas flores.
Para melhor entender o papel da abstração, e concomitantemente da lógica, vamos usar uma metáfora, uma comparação. Vamos classificar os níveis de abstração em tipos como se fossem 3 andares.
O 1º andar seria o espaço da relação direta com a realidade. Os conceitos são relativamente simples, ficam ao nível das aparências, sem grandes abstrações; é a comunicação concreta, simples, popular. É interessante constatar que os esquimós (os inuítes) têm meia dúzia de palavras para designar a neve; não sinônimos, mas palavras relacionadas a cada tipo de neve. Neve é já uma importante abstração; até porque não existe a neve, mas sim os seus diferentes tipos.
No 2º andar estariam todas as generalizações, principalmente nos diferentes campos do conhecimento. É o espaço do rompimento com as aparências e a busca pelo entendimento da essência dos fenômenos. É o campo das leis científicas: a fórmula do pêndulo, o teorema de Pitágoras, o complexo de Édipo, as previsões climáticas.
E o 3º andar? Aí estão as generalizações das generalizações. Vale para qualquer campo do conhecimento o fato de que o acúmulo de variações quantitativas termina por gerar mudanças qualitativas. É o espaço da lógica formal e da lógica dialética. Enfim é o campo das relações mais abstratas, mais gerais; aquelas que valem para todas as áreas do conhecimento, para todas as ciências. Dentro dessas relações ou constatações mais gerais temos que ter claro que tudo está sempre mudando, são sistemas em processos em desenvolvimento, processos esses cujo devenir é determinado pelo comportamento de algumas poucas variáveis.
Para melhor compreender a questão dos diferentes níveis de abstração um bom exemplo é o caso de uma criança com febre alta.
Qualquer mãe sabe que se a temperatura do seu filho adoentado começar a subir ela tem que fazer alguma coisa: controlar e buscar baixar essa temperatura por meio de compressas ou algum antitérmico. Esse “saber” da mãe é prático, concreto. É como uma receita: é assim que tem que ser feito. Esse é o 1º andar, das coisas concretas, pouca abstração.
Estaremos no 2º andar se um médico, ou mesmo uma mãe mais instruída, analisar o problema sabendo que o corpo humano não sobrevive fora de uma faixa pequena de temperatura que vai dos 35ºC aos 40ºC. Esse 2º andar é o andar da teoria, das ciências, da capacidade analítica nas diferentes áreas do conhecimento humano.
Mas esse mesmo problema pode ser tratado em um 3º andar, o da teoria da teoria, o das leis gerais do conhecimento, o da lógica. Umas das leis da lógica dialética diz que o acúmulo de mudanças quantitativas termina por gerar mudanças qualitativas. Aumentando muito a temperatura do corpo advém a morte.
Esse 3º andar trata de um campo limitado do pensamento humano: o da teoria da teoria, o das categorias, o da lógica e da dialética.
E nesse 3º andar é difícil ficar. Nossa pressa, nossa ansiedade, nossa cultura pragmática nos fazem cair, rápido e inconscientemente, para o 2º e 1º andar.
Vamos então examinar as características muito gerais dos processos que ocorrem em diversas áreas da realidade. Vamos trabalhar no terceiro andar, mas no final para dar exemplos em diferentes campos científicos voltaremos a caminhar pelo 2º andar.
Do voo de um colibri à fusão de estrelas, de um pesadelo ao papel da clorofila, a realidade aí está. Cada um a olhando à sua maneira. Mas essas variadas percepções subjetivas vão tendendo a se unificar por meio da linguagem e da interação em uma concepção objetiva do que aí está.
E se pusermos atenção nessa realidade complexa verificamos que é possível separar o todo em partes. O sistema total pode ser dividido em subsistemas, que por sua vez são sistemas que muitas vezes podem também ser subdivididos. As partes sempre integradas no todo. A separação é relativa, mas ajuda a entender o desenvolvimento de cada subsistema e sua integração no desenvolvimento do todo.
A análise do que acontece com o todo e com cada uma de suas partes nos permite constatar que nada permanece com está. As variáveis que caracterizam cada sistema mudam constantemente. A melhor forma de enxergar essa realidade mutante é entendê-la como um processo de mudanças. Esse tipo de entendimento não é uma alternativa possível, mas é um fato observável.
Um sistema e seus possíveis subsistemas é sempre um conjunto de variáveis estruturadas em um constante processo de desenvolvimento. Essa é uma característica do mundo em que vivemos. E poderia ser diferente? Sim, mas não é. Nosso mundo é um conjunto de processos.
No processo de desenvolvimento de um sistema entram muitas variáveis. Às vezes muitíssimas. Mas, curiosamente, se observarmos com atenção o comportamento dessas diferentes variáveis de um sistema, vamos constatar algo incrível: elas são articuladas, interdependentes, mas algumas poucas são determinantes e as outras, a maioria, é determinada. Algumas poucas são principais e o resto coadjuvante.
Não se trata de uma ideia, de uma possibilidade. Trata-se de uma constatação, de uma interessante e muito importante característica de nossa realidade. Se essa é uma característica geral de nosso mundo, a melhor forma de entender uma parte do todo, um sistema, é analisá-lo como processo e buscar identificar a ou as poucas variáveis determinantes em cada etapa de seu desenvolvimento. Não é fácil, mas possível.
Ao identificar em um sistema suas variáveis determinantes, que são poucas, passamos a ter uma visão do essencial do seu processo de desenvolvimento. A realidade dispersa e confusa se ilumina e surge a articulação clara e simples de seus fatores determinantes.
Mas é necessário tomar cuidado com o simples, com a simplificação. Poderíamos falar em 2 tipos de simplificação: a redutora e a abrangente.
É redutora quando passamos a perceber o próprio objeto, a realidade, como simples ”reduzindo” sua real complexidade. Erro usual no dogmatismo e no senso comum.
O correto é reconhecer na maioria dos sistemas de nossa realidade, de uma infecção às mudanças climáticas, a complexidade. Mas se descobrirmos nessa realidade o que é realmente determinante, essencial, tendemos a chegar a formulações simples.
Vejamos alguns exemplos:
- O câncer é essencialmente um crescimento desordenado de células, e, portanto, o tumor necessita de muito sangue para o seu metabolismo; o seu crescimento gera artérias irrigadoras: a angiogênese; daí serem os inibidores de angiogênese uma arma eficaz contra o câncer;
- A grande expansão inicial da indústria automobilística teve com centro dinâmico as peças intercambiáveis introduzidas por Ford;
- O essencial da primeira revolução industrial não foi a máquina a vapor, mas a passagem das ferramentas da mão do homem para a roda; e isso só foi possível quando os artesãos colocados pelos comerciantes sob um mesmo teto na manufatura passaram a dividir o trabalho, se especializando em tarefas repetitivas que puderam ser mecanizadas;
- A vitória dos russos sobre as forças maiores e mais preparadas de Napoleão só foi possível quando eles organizaram tudo em função do seu aliado determinante: o frio.
E é essa realidade na qual vivemos. Complexa e sempre mudando. Mas atrás desse aparente caos há uma certa ordem, uma grande repetição. Einstein sintetizou isso de uma forma poética: “O mais incompreensível deste mundo é que ele é compreensível”. Observando, analisando e teorizando, cada um com seu olhar, mas integrando-se numa acumulação objetiva vamos entendendo cada vez mais esse mundo do qual fazemos parte. Mas isso só pode ser feito nos afastando da percepção imediata, num processo de abstração compartilhado com nossos semelhantes, e cientes de umas das características curiosas desse nosso mundo: o de que tudo se desenvolve por meio de processos que parecem ter todos comportamentos semelhantes.
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