Tenho sido incentivado por amigos a falar um pouco das minhas experiências de vida e dos casos que muitas vezes tenho contado em papos do cotidiano. Não pretendo fazer história, só falar da minha percepção sobre situações que tenho vivido, inclusive buscando articulações entre diferentes momentos nos últimos 50 anos, como nos filmes modernos, onde o enredo vai e vem no tempo.

Pra começar, gostaria de dizer que, no quadro político que estamos vivendo nestes últimos anos, tenho estado mais perdido do que cego em tiroteio, como dizia o povo do Crato. Tanto no País, como nos Estados, o quadro é, no mínimo, esquizofrênico. Tudo está cada dia mais confuso. As referências político-partidárias se desbotaram na falta de definições de quem defende o quê; seja pela falta ou pela embrulhada de orientações programáticas; seja pela falta de articulação minimamente coerente entre tradicionais aliados.

Mas, a coisa não para aí. Nos dias de hoje, estão confusas as bases de referências coletivas que sempre balizaram minha maneira de pensar e minha prática social e política. Sinto falta daqueles grupos com os quais procurei contribuir durante anos para o desenvolvimento de uma sociedade democrática e justa.

Nos dias de hoje, os grupos de troca de ideias, agora só pela internet, cada dia mais numerosos, se limitam a trocar informações públicas e opiniões pessoais. Faltam perspectivas objetivas de se construir, minimamente, uma ação política consequente. Ai, que saudade da militância dos anos sessenta, setenta e oitenta. Tínhamos sempre projetos concretos em andamento. Todos trabalhávamos para sustentar a família, mas não parávamos de fazer política. Organização comunitária nos bairros, eventos de debate político sobre a resistência democrática, apoio às campanhas dos candidatos identificados com nosso pensamento, apoio a colegas perseguidos pela polícia, … sempre se tinha algo em andamento, todos comprometidos.

No início dos anos 80, criamos o Centro de Pesquisa e Ação Social. Trabalhávamos basicamente com Comunidades da periferia do Recife com foco no apoio ao desenvolvimento comunitário envolvendo militantes de engenharia, arquitetura, sociologia, psicologia, teatro, … Projetos de urbanização, de regularização fundiária, de saneamento, de escolas; sempre orientados pelas decisões da própria comunidade e organização de entidades com poder de decisão. Oferecíamos nossos serviços, sem interferir nas decisões. Trabalhamos em muitas comunidades, mas os projetos mais notáveis foi o Teimosinho (Brasília Teimosa) e o Ponte do Maduro (nos dois lados da Agamenon Magalhães.

Algumas lembranças são muito gratas. Para mobilizar os jovens em Brasília Teimosa, que tinham vergonha de tomar o ônibus do seu bairro e tomavam o de Boa Viagem, indo a pé pra suas casas, desenvolvemos uma pequena peça de teatro com base numa história real vivida pela comunidade. Até os anos 60 não havia ônibus pro bairro. Um motorista de empresa, que morava no bairro e pegava muito cedo, levava o ônibus pra perto de casa pra iniciar a primeira viagem. Um belo dia, quando chegou no ônibus para sua primeira viagem,  o carro estava lotado com os moradores que forçaram a porta e comunicaram que só desceriam no centro da cidade. Fora da linha autorizada o veículo foi parado pela polícia e os moradores começaram um movimento de reivindicação que só parou quando a prefeitura criou a linha Brasília Teimosa. Desenvolvemos a peça com a população e os jovens foram os atores. Ser do bairro passou a ter um valor diferenciado e o projeto ganhou mais visibilidade.

No próximo texto vou contar algumas estórias como esta. Hoje é outra coisa. Em 2017, quando criamos o Movimento Ética e Democracia, tínhamos a ideia de uma participação mais direta no desenvolvimento de projetos mais efetivos, inclusive no quadro eleitoral. Passadas as eleições, pensamos em modelos de articulações para resistir ao que se anunciava como autoritarismo do governo, defendendo princípios democráticos nas práticas institucionais. Na prática, nos tornamos um movimento intelectual sem muita efetividade nas ações políticas, como muitos outros que se desenvolveram no País, sempre com foco na ética e na democracia, mas sem projetos concretos para ajudar a mudar o quadro caótico em que se encontra a política brasileira.

Um dos melhores, e mais efetivos, exemplos desta prática veio à baila esta semana (dia 22/09/2020) num debate sobre o Marco Regulatório do Saneamento, promovido pelo nosso Movimento Ética e Democracia. Neste debate, José Carlos Melo, reconhecido pela sua contribuição no desenvolvimento do modelo de “esgoto condominial” para operar em favelas e Roberto Tavares, ex-presidente da Compesa, fizeram uma avaliação desta nova lei com duas perspectivas diferentes. Enquanto Roberto Tavares focou o domínio técnico e institucional da questão, numa perspectiva de viabilização de projetos públicos e privados na área de saneamento, numa perspectiva otimista; José Carlos ressaltou a situação crítica do sistema de esgotamento sanitário no País e, em particular, nas favelas, onde há uma urbanização desordenada, falta de decisão política e limitações das competências técnica e social. Para ele, a delegação desses sistemas para os estados e municípios e, sobretudo, a pretendida privatização dos sistemas, dificilmente trará melhorias objetivas para solucionar o problema do saneamento no Brasil. Mais desordenada ficará esta situação com o constante crescimento das favelas nas grandes cidades.

No final de duas horas de debate com pessoas de diversas competências, ficou uma expectativa pouco animadora sobre a repercussão do Marco Regulatório nas soluções dos problemas mais graves do saneamento público no Brasil. Só para não perder a referência, José Carlos trabalhou com a gente no Centro de Pesquisa e Ação Social, quando começou a desenvolver a ideia de Esgoto Condominial. Modelo, cuja implantação foi patrocinada pelo BIRD em vários países, atendendo hoje mais de 5 milhões de pessoas.

Para além dessas questões objetivas, ao longo dos últimos anos, as referências ideológicas da política perderam o foco filosófico e ético para se prostituir como marketing eleitoral; como balizas de divisão das pessoas em lados opostos. Tudo urdido para enganar as massas de eleitores iletrados ou ainda congraçar intelectuais que terminam embarcando em projetos de coalizões de poder, onde se misturam alhos e bugalhos; sempre com o objetivo final do controle das instituições, sob o argumento de que “o voto do povo é soberano”. Votos cada dia mais tutelados por afiliações de dependências esquizoides aos líderes populistas.

Assumido o poder pelo voto, as malfadadas orientações programáticas declaradas nas campanhas eleitorais são jogadas de lado ou manipuladas, em nome de projetos de poder, onde cada grupo político têm sua parte. Um rateio de cargos e dotações orçamentárias, função da força de cada segmento nas coligações eleitorais e pós-eleitorais. O projeto de nação que se exploda.

Mas, o pior, é que esta velha política que manipula a população, inclusive nos dias de hoje com a adesão de partidos que já mereceram crédito como o MDB, com os postos de liderança do governo Bolsonaro da Câmara Federal e do Congresso, está sendo superada por uma coisa muito mais grave que este chamado populismo. Em artigo publicado nesta quinta-feira no JC, o ex-ministro e ex-militante do nosso Centro de Pesquisa e Ação Social, Raul Jungmann, nos alerta para “ferramentas de inteligência artificial e o Big Data”, que manipulam cada dia mais as decisões individuais e coletivas das sociedades modernas, em detrimento de valores, princípios e crenças das nossas populações. Uma tendência que também aparece explícita num filme polonês de 2020, ‘Rede de Ódio’ (Netflix).

Para finalizar por hoje; eu estava terminando um papo no WhatsApp sobre a degradação política que vivemos e perguntei: o que nos resta? Um amigo respondeu prontamente: tocar um tango argentino.