Pode-se divergir, e muito, do político Fernando Henrique, especialmente quando no exercício da presidência viu-se às voltas, como qualquer eleito, com os desafios normais da governança que não poupam ninguém de erros, falhas e fracassos. Dificilmente, porém, se poderá desconsiderá-lo na sua atividade posterior: concluídos os dois mandatos presidenciais, continuaria a ser figura influente sem que insinuasse uma volta extemporânea ao cargo, como se o País dele, e de mais ninguém, dependesse para “se salvar”. Caso raro, pois, de ex-presidente que se impôs como referência, passível obviamente de críticas e observações polêmicas – até mesmo aquelas que o tornaram uma espécie de encarnação do “neoliberalismo” na simplificada, mas eleitoralmente rendosa, versão petista.

Seu artigo “Reeleição e crises” (O Globo/Estadão), publicado na véspera do dia da Independência, mereceu mais do que a habitual atenção. Nele, FHC faz um inédito “mea culpa” sobre a emenda da reeleição, “historicamente um erro”. Reafirma a insuficiência dos mandatos executivos de quatro anos e propõe um mandato único de cinco, sem direito a recondução, possivelmente associado a reformas de outro tipo nos demais mecanismos eleitorais (o voto distritalizado). O pressuposto de fundo está contido na frase: “Imaginar que os presidentes [qualquer presidente, não só Bolsonaro – LSH] não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. E a expectativa é que, confortados com a duração maior dos mandatos, os mandatários procurariam nela acomodar as pretensões de entrar para a História pátria, diminuindo o empenho demagógico que hoje empregam para obter um segundo termo.

Reformas constitucionais são um tema que nos convida a pensar intensamente sobre nossas relações com os governantes e as instituições. No caso brasileiro, a sucessão de PECs tem um lado inevitável, dado o caráter analítico do texto constitucional. Um defeito fruto do tempo, provavelmente, mas não insanável. Feitas com zelo, longe das armadilhas do casuísmo, podem até ter o condão de aproximar a população do texto magno, fazendo compreender cada vez mais sua relevância na vida de todos. E neste ponto, a nosso ver, reside o pecado de nascença da reforma reeleitoral de 1997, que à época pareceu ter sido feita sob medida para beneficiar o incumbente e espantar o fantasma da candidatura Lula.

Às reformas desse tipo aplica-se o que se diz da mulher de César. Não podem estar a serviço de ninguém nem parecer que estão. Deixando de lado a questão da “compra de votos”, que o ex-presidente repele com serenidade, o fato é que em 1997 agiu-se de modo apressado e insuficiente, o que sempre constitui terreno fértil para hipóteses mais ou menos mal-intencionadas. Fernando Henrique escreve ter tido em mente o que acontece nos Estados Unidos, onde notoriamente o ciclo presidencial bem-sucedido compreende, em princípio, dois mandatos de quatro anos, articulado com mandatos legislativos de dois (para os deputados) e quatro anos (para os senadores). Um ciclo que se repete exitosamente há mais de dois séculos com uma só exceção, a saber, o caso singularíssimo de um grande presidente, F.D. Roosevelt. Colhido pela morte no início do quarto mandato, Roosevelt representou uma mudança na regra não escrita de uma só reeleição, mudança que o legislador expressamente proibiria a partir de uma das raras emendas feitas à Constituição de 1787.

Apressada e insuficiente, a emenda de 1997 esqueceu-se de prever este limite precioso: a impossibilidade de o presidente, cumpridos os dois termos, voltar a candidatar-se para um cargo eletivo, um limite que a nosso ver traz uma contribuição, ainda que não suficiente, para renovar as elites políticas e, muito especialmente,  para atenuar as pretensões salvíficas com que se embriagaram, e se embriagam, tantos personagens da nossa História. Repúblicas presidencialistas, como se sabe, inspiram-se em última análise em figuras monárquicas, só que com prazo de validade, mas há quem, no exercício da presidência, julgue-se coroado com mais e maior pompa do que no tempo dos reis…

Um último argumento – o de que incumbentes dilapidam as arcas do Tesouro para obter o segundo mandato – não pode ser descartado sem comentário. Argumento forte, que se baseia na ideia de que nem todos os presidentes se comportam como estadistas; ao contrário, muitos deles têm uma visão medíocre e convencional, mesmo que tenham sido referendados pelas urnas. Um governante medíocre, de fato, sempre será capaz de mudar de rumo e de prosa, contrariar convicções antigas (se é que as tinha de verdade) para renovar o cargo e manter-se no poder. Tudo o mais é instrumental. Seria desta natureza, segundo FHC, a relação entre o atual presidente e o seu ministro da Economia, cujo liberalismo, originalmente rançoso e carunchado, viu-se em seguida atropelado pelos fatos e pelas circunstâncias, limitando-se hoje a viabilizar intenções reeleitorais.

Cabe observar que, na falta daquela cláusula contra as pretensões salvíficas e os respectivos salvadores da pátria, o mesmíssimo assalto ao Tesouro pode acontecer sob mudada aparência. Não custa lembrar que a década perdida – efetivamente perdida – que se inicia em 2011 teve logo antes de si um ano de superaquecimento econômico deliberada e artificialmente induzido, para favorecer não um projeto pessoal de reeleição, mas um mandato-tampão que prepararia – tanto quanto se podia prever à época – o retorno triunfal, em 2014, do “melhor presidente que este país já teve”. Logo, medidas de contenção do uso e abuso do poder de Estado nas conjunturas eleitorais devem ser pensadas em todas as direções, não só naquela indicada pela recandidatura do incumbente.

Depois da mencionada campanha de 2010, arrebentadas as contas fiscais, exaurida a capacidade de coordenação e planejamento público, o que se seguiria é a tragédia que ainda transcorre sob nossos olhos, com o advento de um messias inacreditável, uma economia em frangalhos e uma sociedade atormentada por níveis inéditos de barbárie. Tudo isso condimentado com a possibilidade, aberta pela reforma de 1997, da reiteração de atores, enredos e desfechos no iminente encontro marcado de 2020 e, mais ainda, no de 2022.