A Revolução dos Cravos 1974 – Portugal.

 

Desde o século dezoito o mundo experimentou três ondas democráticas, bem como momentos de “democratização”, para usar o conceito  do cientista político Samuel P.Huntington. A primeira onda foi a de maior duração. Teve início em 1826 e esgotou-se por volta dos anos 20 do século passado, com a ascensão do fascismo e do nazismo de um lado, e, de outro, do stalinismo na chamada Pátria-mãe do socialismo, a União Soviética. A derrota do nazifascismo na segunda guerra mundial, propiciou a segunda onda  democrática, que foi de 1945 a 1962. Esse ciclo se encerra com a construção do muro de Berlim e o acirramento da guerra fria, que pôs o mundo à beira de um holocausto nuclear na crise dos mísseis e sufocou a Primavera de Praga. A terceira onda, que analisaremos ao longo do artigo, teve início em 1974 e durou até a metade da primeira década do século atual.

Uma década depois da instituição do Dia Mundial da Democracia, 15 de setembro de 2010, o mundo está submerso em uma recessão democrática, que pode se aprofundar nesses tempos de pandemia, como alertou manifesto assinado por 160 intelectuais da América Latina e ex-presidentes, entre os quais Fernando Henrique Cardoso, Tabaré Vázquez, José Mujica e Mauricio Macri. O marco temporal do recuo da democracia é 2006, quando aumentou o número de países de índole autoritária e de democracias de baixa qualidade.

Esse fenômeno levou o cientista político Larry Diamond, da Universidade de Oxford e autor do livro “Ill winds” a   ser o primeiro a usar o termo recessão democrática para definir o período que vivemos.

Com ele, chegou ao fim a terceira onda democrática, iniciada em 1974 com a crise das ditaduras. Uma por uma elas foram caindo em efeito dominó: Grécia, Portugal, Espanha. Nos anos 80 foi a vez das ditaduras militares da América Latina. Os ventos da democracia chegaram ao leste asiático, derrubaram o muro de Berlim, fizeram ruir as ditaduras do “socialismo real”. Com o fim da União Soviética houve um encolhimento de países de regime totalitários, ao tempo em que a democracia se estendeu para o leste europeu.

Os ventos da democracia varreram não apenas o salazarismo e o franquismo. Arejaram também partidos comunistas da Europa Ocidental, particularmente o da Itália de Enrico Berlinguer e o da Espanha de Santiago Carrilho. Na União Soviética emergiu Gorbatchov, com sua glasnost e perestroika, que revelaram a impossibilidade de o modelo autoritário do “socialismo real” de se auto reformar.

Mesmo na China de Deng Xiaoping houve um afrouxamento do regime, apesar do massacre da Paz Celestial. As tendências passaram a ser toleradas no interior do Partido Comunista e  criou-se a expectativa que  o desenvolvimento e a integração da China na economia mundial, o país findaria por desaguar em uma democracia.

Os anos 90 foram o apogeu da terceira onda democrática, com o multilateralismo em alta e a afirmação da democracia como o grande valor universal. Ao final do século 20, as ideologias e regimes totalitários – de direita ou de esquerda – tinham sido derrotados. O Brasil singrou nesses mares, vivenciando o maior período de sua história sem quarteladas ou interrupção democrática. A Constituição-Cidadã de 1988 alargou a democracia política e social.

Larry Diamond tem razão quando define 2006 como o marco temporal do fim dessa onda. Mas foi sobretudo na segunda década deste século que a recessão democrática se expandiu. Seu ponto culminante foi a vitória de Donald Trump. Com ela, instalou-se uma cultura autoritária no berço da democracia moderna. A onda chegaria ao Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A resiliência das nossas instituições tem segurado o tranco, mas a qualidade da nossa democracia foi rebaixada significativamente.

O populismo, de direita ou de esquerda, espraiou-se pelos quatro cantos do mundo. Na América Latina, tivemos o populismo de esquerda. Na Europa, a vaga nacional-populista de direita gerou regimes híbridos – formalmente democráticos, mas com forte viés autoritário – como os da Hungria, Polônia e Turquia. A Índia do primeiro ministro Narendra Modi deixou de ser a maior democracia do mundo em termos populacionais para se tornar um país de regime híbrido, tendendo para o autoritarismo. O colapso da Primavera Árabe foi parte desse roteiro.

Na Europa ocidental emergiram lideranças da extrema-direita como Matteo Salvini na Itália e Marine Le Pen na França. E, pela primeira vez depois da segunda guerra mundial, surgiu um partido forte de extrema direita na Alemanha. A União Europeia, o mais avançado arcabouço institucional do multilateralismo, foi duramente golpeada com a vitória do Brexit na Grã-Bretanha.

A Rússia, país sem cultura democrática arraigada, saiu da ditadura do partido único para o nacional-populismo de Wladimir Putin, assim como tinha saído do czarismo para o “socialismo real”. O novo “czar de todas as Rússias” fez ressurgir das cinzas o pan-eslavismo, reposicionando-a na geopolítica mundial como grande player. Na China de Xin Jinping, o Partido Comunista suprimiu tendências internas e reforçou o seu controle sobre a economia e a sociedade. O modelo autoritário chinês se apresenta como meritocrático alternativo à “democracia disfuncional”.

Não é a primeira vez na história em que a “disfuncionalidade” da democracia é contraposta à racionalidade e eficácia de regimes totalitários. Nos anos 30, o fascismo e o comunismo vendiam-se como alternativas à “ineficiência” da democracia. A Itália de Benito Mussolini jactava-se porque os trens saiam no horário, enquanto o stalinismo vangloriava-se de ter tirado a Rússia do seu atraso, transformando-a em uma potência mundial. Ao final do século 20 os vitoriosos não foram o fascismo ou o socialismo. Foram o capitalismo e a democracia.

Sim, ventos ruins varrem o mundo nesses dez anos de Dia Mundial da Democracia, mas há sopros de esperança no apagar das luzes da década. Mesmo em países de regimes híbridos, como a Polônia e a Hungria, há sinais positivos. A última eleição polonesa revelou um país divido ao meio, com quase metade da população se manifestando favorável à democracia.

Na Hungria de Viktor Orbán, partidos de oposição pela primeira vez se uniram para disputar as próximas eleições. O nacional-populismo, por sua vez, mostrou-se impotente diante da pandemia. O isolacionismo foi incapaz de responder à crise sanitária global. O negacionismo, por sua vez, desnudou lideranças como Matteo Salvini e Donald Trump.

A resposta assertiva da União Europeia para a reconstrução das economias dos países afetados pela pandemia serviu de contenção à vaga nacional-populista.

Angela Merkel se afirmou como a grande liderança europeia, quiçá mundial. A eleição alemã acontecerá no ano que vem, mas as pesquisas já indicam um fortalecimento robusto do partido de Merkel – o CDU. Seu partido acaba de ser vitorioso nas eleições municipais na região mais populosa da Alemanha e o Partido Verde se afirmou como segunda força. O grande derrotado foi o Alternativa Para a Alemanha, de extrema-direita, com apenas 5% dos votos.

O fato mais esperançoso vem dos Estados Unidos, onde uma cultura de unidade nacional instalou-se primeiro no Partido Democrata  e vem conquistando corações e mentes. Joe Biden lidera, até agora, as pesquisas. Depois de oscilar para baixo, recuperou terreno nas simulações diárias do site FiveThirtyEight, com 75% de chances de vitória.

Uma possível vitória de Joe Biden não significará necessariamente o fim da recessão democrática e nem sequer o começo do fim, mas talvez o fim do começo, para usar a genial frase de Winston Churchill.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. Foi professor na Escola Politécnica da USP. É colaborador da Revista Será?.