Desde os anos 90, quando as primeiras iniciativas para tornar o Banco Central (BACEN) brasileiro independente   foram tomadas, criaram-se várias resistências e controvérsias, especialmente por pessoas e instituições à esquerda do espectro político. O tema foi ideologizado e demonizado como sendo uma proposta “neoliberal,” seja lá o que isso signifique, ou por atender apenas aos interesses do sistema financeiro. Essa reação atrasou por três décadas a instituição de um banco central independente no país. Coube ao Governo Bolsonaro assinar a peça legislativa que tornou o BACEN autônomo depois de um longo período de tramitação no Congresso Nacional e de uma longa espera pelos agentes econômicos. Esse projeto constava da pauta de Paulo Guedes, que sempre abraçou a ideia.  Enfim, por que precisamos de um Banco Central Independente? Quais são os fundamentos para tal?

Quais as funções de um moderno banco central? O Banco Central é o banco dos bancos, emite moeda, calibra o grau de liquidez do sistema bancário de várias formas, inclusive ao definir a relação encaixe/depósito (percentual de novos depósitos que podem ficar disponíveis para empréstimo pelos bancos comerciais), define a taxa básica de juros (SELIC) da economia por meio do Conselho de Política Monetária (COPOM), gerencia o sistema de câmbio flutuante com eventuais intervenções “sujas” e regula os sistemas bancário e financeiro. Uma das formas de aumentar a oferta de moeda, em momentos de crise muito praticada nos EUA e na União Europeia desde 2008, é o uso do quantitative easing (flexibilização quantitativa), instrumento pelo qual os bancos centrais   compram títulos da dívida pública e privada, irrigando a liquidez da economia e financiando as despesas de governos, empresas e famílias. Isso ocorre quando as taxas de juros nominais estão tão baixas que qualquer iniciativa para torná-las ainda menores são ineficazes.

Todavia, a grande missão do banco central é garantir a estabilidade de preços, ou seja, manter o nível geral de preços sob controle. Ele é o xerife da inflação, e a grande arma para evitar que a inflação saia de controle é a taxa de juros. Um dos instrumentos para gerenciar a inflação é o sistema de metas anuais de inflação, operado pelo BACEN e adotado pelo Brasil desde 1999, onde se define o centro da meta da inflação e um intervalo de variação em torno da qual ela pode se situar. Em 2021, o centro da meta é de 3,75%, com o piso em 2,25% e o teto em 5,25%, uma amplitude de 3,0% (-1,5% e + 1,5%), sendo a inflação medida pelo IPCA no acumulado de 12 meses, o que coincide com o ano civil quando o período for de janeiro a dezembro. Em 2020, a inflação foi de 4,52%, acima do centro da meta definido para o ano (4,0%), mas dentro do intervalo de 3,0%, com o piso em 2,5% e o teto em 5,5%. O Banco Central elabora periodicamente o relatório de inflação e se justifica perante a sociedade e os agentes econômicos quando o a inflação não atingir as metas definidas para o ano.

Os bancos centrais têm um enorme poder como executores da política monetária, umas das pernas do tripé da política macroeconômica, junto com a política fiscal e a tributária. A política monetária exercida pelo banco central, independente, mas em harmonia com a política fiscal, poderá moderar também os ciclos econômicos, e permitir maior estabilidade no mercado de trabalho.

Este poder tem que ser usado sobretudo para manter a estabilidade do sistema de preços.  Inflação descontrolada é   doença grave da economia. Uma hiperinflação destrói o sistema de preços, as relações de troca, cria desabastecimento, jogando milhões à pobreza e à revolta social, com consequências políticas imprevisíveis. Governantes irresponsáveis podem gerar esse caos, se o banco central for subalterno aos interesses do momento político. Foi isso que aconteceu na Alemanha da República de Weimar durante a década dos vinte, após as implacáveis punições econômicas e financeiras impostas pelos vencedores da I Guerra Mundial àquele país por meio do Tratado de Versailles, com as quais Lord Keynes, representante britânico nas negociações, não concordou, retirando-se em protesto. Entre 1921 e 1923 a Alemanha foi assolada por uma hiperinflação devastadora (29.500 % ao mês), alimentada por gastos públicos sem controle, financiados por emissões de moeda de um banco central subalterno.  Esse fato histórico, que contribuiu para alimentar o nazismo então nascente, foi fundamental para que economistas e governantes clamassem por um banco central independente. O Bundesbank foi o primeiro banco central a se tornar independente, tornando-se um dos mais sérios e respeitados do mundo, uma referência para os demais.

Se a instituição do Banco Central tem tanto poder,  por que não mantê-lo sob controle?  Por que conceder autonomia a instituição tão poderosa?  Não seria melhor ter as rédeas do banco central à mão?

A história nos ensina que um banco central sem autonomia poderia sofrer fortes pressões do Presidente de plantão para financiar gastos públicos via emissão de moeda ou quantitative easing, ou para baixar ou elevar a taxa de juros artificialmente, em desalinho com que a macroeconomia ditaria ser a taxa de juros de equilíbrio. Poderia também ser instado a intervir de forma mais agressiva do que o faz eventualmente (intervenções “sujas”), para evitar desvalorizações sucessivas do real perante o dólar, desestabilizando o câmbio e comprometendo reservas em moeda estrangeira, nosso colchão de proteção contra vulnerabilidades externas. O banco central tem que ter credibilidade junto aos atores econômicos e ser capaz de ancorar, pela confiança que inspira no mercado, a inflação em torno do centro da meta, e os juros e o câmbio em torno dos seus valores de equilíbrio. Um banco central sem credibilidade cria dificuldades para a economia.

Temos exemplo recente. Sob o Governo Dilma, o Presidente do BACEN perdeu credibilidade por ceder às pressões do Ministério da Fazenda para baixar artificialmente os juros. O resultado é bem conhecido: inflação, desemprego e um Presidente impeached por razões políticas fundadas em más práticas fiscais e, eu diria também, monetárias.

Um argumento contra a independência do banco central usado frequentemente por alguns segmentos da esquerda brasileira, especialmente em campanhas eleitorais, era de que sua autonomia – com mandatos para Presidente e Diretores – submeteria o interesse público aos   do sistema financeiro. Este argumento foi usado por alguns parlamentares na recente votação do projeto de lei que concedeu autonomia ao Banco Central. A experiência internacional, com dezenas de bancos centrais independentes ao redor do mundo e sob as mais diversas conjunturas políticas, não respalda tal assertiva, embora não tenham faltado tentativas de fazê-lo.  Recentemente o ex-Presidente Trump pressionou, sem sucesso, Jerome Powel, Presidente do FED (banco central dos EUA), a baixar os juros básicos da economia americana.

Presidentes de banco centrais têm que conhecer bem o funcionamento do sistema bancário e financeiro e seus meandros, quer eles sejam egressos da academia, dos próprios bancos centrais ou do sistema financeiro. Isso não significa que eles sejam subalternos aos interesses do mercado. Ressalte-se que o Presidente do Banco Central tem autonomia, mas também é regulado, e se cometer crimes de responsabilidade, poderá perder o cargo, ouvido o Senado.

Espera-se que o Banco Central, seu Presidente e Diretores, usem seus poderes para exercer uma política monetária soberana, mas em harmonia com a estabilidade macroeconômica, um dos fundamentos para que o país volte a crescer de forma sustentável. O BACEN, uma instituição estratégica e agora autônoma, poderá conduzir o país no futuro a uma trajetória de taxas de juros mais baixa do que aquela que prevaleceria, não tivesse obtido sua independência. Esse é o bônus que decorre da confiança depositada pelos agentes econômicos em um banco central capaz de resistir às pressões da conjuntura política.

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Jorge Jatobá  é Professor Doutor em  Economia e Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).