O Papa deve expressar compaixão, mais ainda pelos pobres. Assim não surpreende que o Papa Francisco tenha vindo em apoio à quebra de patentes para vacinas, poucos dias depois que o mundo foi pego de surpresa com a declaração do presidente dos Estados Unidos Joe Biden, em 5 de maio, de que defendia a suspensão global de patentes das vacinas anti-Covid. Segundo o Papa, “as leis do mercado intelectual ou da propriedade intelectual não deveriam ser colocadas acima das leis do amor e da saúde da humanidade”. Fato é que os que estão mais sofrendo com a Covid no mundo inteiro são os mais pobres. E ao Papa Francisco não se exige que fundamente seu apelo humanitário em estudos preparados pelo Vaticano sobre a produção e o comércio mundial de vacinas. Mas… E o Presidente dos Estados Unidos? Será que a escassez da oferta de vacinas e a falta de vacinas nos países mais pobres são causadas pelos direitos de propriedade intelectual?

A Representante Comercial dos Estados Unidos, Katherine Tai, em comunicado, disse que direitos de propriedade intelectual são importantes para as empresas, mas que o governo americano apoiava a suspensão para acabar com a pandemia: “Esta é uma crise de saúde global, e as circunstâncias extraordinárias da pandemia da Covid-19 exigem medidas extraordinárias.” Em tese, uma quebra de patentes permitiria que empresas farmacêuticas fabricassem cópias ou imitações das vacinas sem o temor de serem processadas por infringirem direitos de propriedade intelectual. Em tese, pois detalhes concretos da proposta americana ainda não foram apresentados.

Líderes europeus reunidos dois dias depois na cidade do Porto, para a Cimeira Social da União Europeia, reagiram decididamente contra a ideia da suspensão de patentes. Apoiaram o Presidente Biden no objetivo de aumentar a produção de vacinas, mas insistiram que o seu foco está errado, pois as novas patentes não são o gargalo da produção. Na situação atual, está bastante claro que não são essas patentes o que causa a escassez da oferta, não há empresas guardando patentes na gaveta. Em geral, os europeus não só argumentaram que a suspensão de patentes não aumentará por si só a produção, como alertaram que de imediato pode até atrasá-la, desorganizando as cadeias globais de produção e trazendo insegurança jurídica para os contratos de fornecimento e as compras de insumos.

O governo Biden não consultou nem o Papa nem governos europeus, mas estes haviam sido informados, na véspera, da nova posição dos Estados Unidos, de apoiar na Organização Mundial do Comércio (OMC) aqueles países, liderados por Índia e África do Sul, que pedem desde o ano passado a suspensão de patentes. Seria, sem dúvida, um espetacular retorno dos Estados Unidos à OMC, que o país praticamente abandonou há anos, ao inviabilizar o funcionamento do seu Mecanismo de Solução de Controvérsias e optar por barreiras unilaterais e acordos bilaterais.

Na OMC, o acordo setorial conhecido por TRIPS, o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, já dá alguma flexibilidade para situações de emergência nacional, pois permite que um governo conceda compulsoriamente a licença de uma patente a terceiros, sem negociar com o detentor da patente. Também permite acordos de transferência de tecnologia entre produtores de vacina, que acontecem no momento em número considerável, e poderiam ser apoiados e estimulados. Mas uma suspensão global das patentes para as vacinas anti-Covid, como pretendida por Biden, terá que ser negociada, e qualquer um que acompanhou rodadas de negociação na OMC sabe o quanto demoram. Se é para mostrar preocupação com os países mais pobres, bastaria simplesmente reafirmar e anunciar de novo as ações já permitidas no acordo dos TRIPS. E reduzir barreiras à exportação nos países com excedentes.

Licenciar a patente é apenas o passo inicial da pretendida transferência de tecnologia, que teria que incluir a montagem de instalações adequadas para fabricar a vacina licenciada, o que pode implicar patentes de procedimento, isto é, das maneiras de produzir específicas. Há países em que será difícil criar capacidade produtiva para processos complexos. Além de que a licença para imitar ou copiar não garantiria ainda maior oferta dos insumos, que são neste momento o gargalo nas cadeias de produção de vacina, inclusive na Índia. O Primeiro Ministro da Holanda, Mark Rutte, lembrou aos jornalistas no Porto que as atuais vacinas RNA (como as da Pfizer/BioNTech e Moderna) têm 280 componentes trazidos de 19 países.

Em suma, o que fica claro de todos esses prazos estimados é que, até que se chegue a um consenso na OMC e até que isso leve a uma expansão da capacidade produtiva, já estaríamos em 2022. Ao ritmo acelerado em que a produção de vacinas tem aumentado, a expectativa é que já não haverá escassez global de oferta ano que vem. Como notou The Economist no Editorial Vaccinating the world (15/05/2021) “… em 2022 a cavalaria chegará tarde demais”. A questão é a desigualdade do acesso. Esta, em tese, poderia ser enfrentada. E para isso o foco é desfazer barreiras à exportação de vacinas e insumos.

Que o digam idosos na Índia, neste momento sem vacina suficiente, vendo o governo dos Estados Unidos oferecendo cerveja ou pão doce aos adolescentes para que aceitem ser vacinados. Sem falar no “turismo de vacinas”. Países ricos compraram antecipadamente quantidades extraordinárias de vacinas, uma vez que não era possível prever exatamente os resultados dos testes clínicos, e hoje têm estoques que são um múltiplo do que precisam para vacinar todos os seus residentes.

Qualquer licenciamento compulsório teria que abranger, antes de mais nada, uma obrigatoriedade de exportar para os países que não têm capacidade manufatureira própria. Aliás, a primeira observação de dirigentes europeus quando ouviram a proposta de Biden, na reunião do Porto, foi a de que os Estados Unidos, para ajudar os países mais pobres, deveriam exportar mais vacinas.

De fato, a exportação das vacinas e seus insumos é um ponto de tensão internacional ainda mal resolvido. O comércio internacional das vacinas vem se dando mediante contratos entre farmacêuticas e governos. Mas não há transparência no conjunto desses contratos. O Banco Mundial pretende construir uma base de dados abrangente sobre as encomendas de vacinas entre governos, incluindo preço e volume dessas compras. Segundo o Presidente do Banco Mundial, David Malpass, mais transparência, além de revelar os desequilíbrios na distribuição mundial, poderia reforçar a pressão popular para que os países mais ricos ajudem os mais pobres.

Mais de uma vez neste último ano ouvimos acusações recíprocas de “nacionalismo de vacinas”. Enquanto a China e a União Europeia exportaram mais ou menos metade do total que produziram, enquanto até a Índia exportou vacinas, quase 70 milhões de doses, que agora lhe faltam dolorosamente, os Estados Unidos até o início de maio haviam exportado uma parte ínfima de sua produção e continuavam estocando doses. O governo dos Estados Unidos nega que tenha barrado exportações, mas tanto Trump quanto Biden usaram o Defense Protection Act (DPA), uma lei do tempo da Guerra da Coreia, para lidar com produtos médicos na pandemia. Essa lei dá ao Presidente poder emergencial para determinar que as empresas privadas deem prioridade às encomendas do governo, inclusive limitando exportações.

Só bem tarde os Estados Unidos acordaram, na sua “geopolítica das vacinas”, para o fato de que vieram predominantemente da China e da Rússia vacinas aplicadas nos países da América Latina, em boa parte da África inclusive Egito, em vizinhos asiáticos da China, como Indonésia e Turquia, até no Oriente Médio. Faltaram alternativas, como aconteceu, aliás, no Brasil.

Vários países obtiveram apenas as doses vindas da Organização Mundial da Saúde (OMS) pela COVAX (gavi.org/covax-facility). COVAX é a iniciativa multilateral constituída pela OMS junto com a Aliança de Vacinas GAVI, para compartilhamento de vacinas anti-Covid. Recebe doações de governos e filantrópicas, que têm permitido vacinação em países mais pobres ou com esquemas precários de vacinação. COVAX ainda é o melhor caminho solidário para conter a pandemia no mundo. Até agora obteve recursos que lhe permitiram, desde fevereiro deste ano, a distribuição de cerca de 70 milhões de doses a 124 países. El Salvador foi o primeiro país a receber vacinas da Covax, uma quantia que mal deu para vacinar seus profissionais da saúde. Recursos para a COVAX devem ser ampliados com urgência. Por enquanto, COVAX havia aprovado apenas vacinas existentes dos chamados países do Ocidente, mas nos últimos dias finalizou a aprovação de uma das vacinas chinesas, da Sinopharm, o que permitirá ampliar a distribuição e compensar a suspensão recente dos fornecimentos da Índia.

O Papa Francisco, que sabe de céu e inferno, lembrará, com a sensatez de Jorge Mario Bergoglio, que “el camino al infierno está lleno de buenas intenciones”. Já o Presidente Biden, na sua “diplomacia de vacinas”, terá que ir mais longe do que sua bravata vazia que, de qualquer modo, só pode dar resultado com a colaboração dos detentores de patentes que se disponham a ensinar como se fabrica cada vacina. Felizmente, depois de ter o abastecimento interno mais que garantido, e atendendo a clamores de muitos lados, o governo americano começou, esta semana, a autorizar a exportação e a doar mais vacinas. Que os países ricos entreguem seus excedentes à COVAX, que tem permitido vacinação nos locais mais esquecidos deste mundo. Há alguma expectativa de que hoje em Roma, na Cúpula da Saúde Global do G20 de 2021, os países mais avançados ofereçam mais recursos à COVAX.