Condições específicas vividas pelo Brasil levaram à existência, no Nordeste brasileiro, de uma riqueza imaterial importante para esta nação de tão ampla dispersão de latitudes, na qual vieram a ser geradas regiões com muito diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Dentro da área entre os círculos polares, praticamente desabitada, o Brasil apresenta a maior dispersão de latitudes.
Os invasores europeus, ao conquistarem terras de baixa latitude, equatoriais, no leste da América do Sul, descortinaram um espaço com bastante diversa geografia, diferenciação climática, variada cobertura vegetal. A oeste, uma vasta floresta úmida de difícil utilização não extrativa. A leste, uma área semiárida, recorrentemente assolada por secas, e mais a leste, aproximando-se do litoral, uma fímbria de mata úmida própria ao cultivo da cana-de-açúcar. Um ponto central da costa leste equatorial, a oito graus de latitude sul, representava um sonho, se não sonhado, encontrado. Um porto protegido por barreira de arrecifes, a walking distance de morros, magníficos pontos de observação do mar, de onde se descortina mais de uma dezena de quilômetros e rios perenes, navegáveis, que alimentariam uma cabotagem costeira, trazendo ao porto transoceânico produtos derivados da cana-de-açúcar. Açúcar para os europeus; e aguardente, para comprar vidas humanas na África, em adição às conquistadas diretamente em guerras. Recife, o porto, tornou-se grande riqueza equatorial, levando a província de Pernambuco a se constituir em pérola da coroa dos tempos imperiais. E isso ocorreu, mesmo depois de máquinas a vapor terem sido desenvolvidas pelos ingleses – ampliando o uso do nefasto carvão mineral – e, aplicadas na propulsão de navios, terem desfeito a vantagem da proximidade dos portos europeus que a lentidão da navegação eólica concedia ao porto de Recife.
O vapor trouxe para o sul – onde o clima era mais assemelhado das origens dos imigrantes – levas de germânicos, italianos, japoneses, que se dedicaram principalmente à nova riqueza agrícola, o café, e a atividades industriais, das quais traziam conhecimento. A Vila de São Vicente, principal beneficiária do porto de Santos, se industrializou, vindo a ser – desde então – o maior centro de riqueza do país. Em meio a esse processo, a riqueza do café produzia um fruto intelectual de expressiva contribuição à humanidade. Alberto Santos Dumont, nascido nos estertores do império e fruto da nascente riqueza do café, deu contribuição à navegação aérea: ao mais-leve-que-o-ar, no fim do século XIX; e ao mais-pesado-que-o-ar, no início do século XX. Inovações plenamente reconhecidas à época e hoje tentativamente minimizadas pelo historicamente recente convencimento norte-americano de que o impotente artefato dos Wright Brothers fizera um secreto vôo sustentado, em 1903, apesar de sua notória impotência para tal. Questão só publicamente e satisfatoriamente resolvida em 1908, quando, afinal, o Flyer foi visto voando de forma sustentável. O poder dos acervos pode ser bem entendido pelo fato de o artefato dos Wright ter entrado no museu do Smithsonian Institute, em Washington, após os norte-americanos terem se tornado o indiscutível líder mundial, com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando se sentiram capazes de rescrever tal fato histórico.
Na região equatorial, a riqueza produziria – no Recife – o mais antigo jornal em circulação na América Latina, o Diário de Pernambuco, nas primeiras décadas do século XIX, e propiciaria, na segunda década no século XX, o deleite da primeira audiência de transmissão de uma rádio que tomaria a nome de Rádio Clube de Pernambuco. Produziria, também um fruto corporificado na original análise do ambiente socioantropológico. Três raças – a pré-existente ocupante das terras; a invasora, que passou a governar; e a que, sendo trazida como almas compradas ou conquistadas, para trabalhar – produziram o maior país mestiço do mundo. Havia liberdade e estímulo para invasores se casarem com índias. Com a desfaçatez dos invasores, índios eram mortos e havia generalizado nascimento de mestiços, enquanto era proibido o casamento de brancos com negras. O estudo sistemático da brasilidade equatorial viu mundialmente reconhecido o sociólogo Gilberto Freyre. Inusitadamente, para um cientista, Freyre tornou-se deputado federal eleito e, como tal, provocou a criação, por lei federal, de uma instituição de pesquisa social voltada primordialmente ao Nordeste e Norte brasileiros. Isto ao tempo em que se criavam universidades federais nestas regiões, centros de ensino que, com o passar do tempo, incorporariam a atividade de pesquisa.
Um elemento fortuito mais uma vez teria lugar. O único filho homem do sociólogo, advogado, assumiu, em certo momento, a direção da entidade. Contra todas as expectativas que podem ser formadas a partir de casos relativamente similares, fez gestão exemplar, navegando entre apoio político e trabalho em harmonia com o corpo de pesquisadores, técnicos e encarregados da burocracia, para bom funcionamento e expansão, transbordando a instituição de seu foco inicial em pesquisa e abarcando diferentes segmentos culturais. Foi dotando a instituição de competência para tal, formando um excepcional acervo cultural do homem equatorial, do Brasil colonial e de seus ecos. A Fundação Joaquim Nabuco carrega o mais importante e completo acervo cultural do Nordeste. São cerca de 130 mil volumes, entre livros, teses, folhetos, e periódicos nacionais e estrangeiros, incluída a biblioteca particular do abolicionista Joaquim Nabuco e outros componentes doados por famílias de intelectuais e artistas nordestinos. Grande parte desse acervo já se encontra digitalizada e disponibilizada na internet. Os museus, o do Homem do Nordeste, em Recife, com mais de 15 mil peças e o Engenho Massangana, no Cabo Santo Agostinho, com menor acervo, compõem importante testemunho de uma duradoura época formadora do nosso presente.
Acervos culturais são um tipo de patrimônio imaterial que tem componentes materiais particularmente sensíveis ao trato e ao tempo. A instituição é também exemplar no cuidado com tal acervo. Mencione-se um indicador de tal nível de excelência: as duas mais importantes licitações internacionais para recuperação de obras de arte na região foram ganhas e executadas pela Fundação Joaquim Nabuco. Trata-se da recuperação do Teatro de Santa Isabel, Recife, em 2000, teatro monumento nacional por reconhecimento do IPHAN, e da restauração do altar mor da Basílica de São Bento, em Olinda, reconhecidamente um dos mais belos altares barrocos do Brasil. Este último envolveu recuperar a forma original de cada peça de madeira do altar, semidevorado por cupins, estrutura que originalmente pesava 13 toneladas de madeira nobre e ouro. Uma vez montadas as novas peças e recuperado, o altar foi transferido a Nova Iorque e lá exposto, em 2001, no Museu Guggenheim, durante meses. Amostra esta que financiou a recuperação.
O acervo cultural da Fundaj é abrigado por uma instituição bem fundada. Todos os presidentes que sucederam a Fernando Freyre, destacando-se seu homônimo Fernando Freire, “vestiram a camisa da instituição”. Sempre apresentaram em algum momento discordância quando visões externas, mesmo na hierarquia direta, contrariavam o que era visto pela Fundaj como desejável para o cumprimento de sua missão. Se um acervo como o da Fundaj constitui, em condições normais, um trunfo para a sociedade em que está inserido, tal significação se amplia num mundo em que condições mais hostis para a vida econômica e social são antevistas. No interior, episódios de inundações, que trazem grandes prejuízos materiais, têm perspectiva de se amiudar; o mesmo se dá com respeito a grandes secas, e decorrentes perdas econômicas, sociais, culturais. O mar, cuja persistente elevação de nível em cidades litorâneas é dada como inexorável, deverá gerar balbúrdia muito além do que seria o trivial. É preciso fortalecer a resiliência, nestes novos tempos. Tão mais uma sociedade conheça de si mesma – e para isto bem contribui um bom acervo cultural –, tão mais capaz de, no aumento de sua capacidade de resistir, proceder a escolhas racionais que contemplem as próprias especificidades e informações a respeito de soluções que outros povos adotem e tenham interesse que adotemos. O acervo cultural da Fundaj, cuja construção e consolidação foram propiciadas por certo conjunto de condições raras, é indelevelmente importante para nosso presente e nosso futuro.
Essa ida do altar da Igreja do Mosteiro de São Bento, apesar de ter dado tudo certo, apesar de por isso ter sido possivel sua recuperação, foi um dos maiores riscos que o nosso patrimônio histórico e cultural correu. Tudo caminhou bem, o altar foi recuperado, está de volta à sua origem. Só tenho uma pergunta: E SE O AVIÃO QUE O TRANSPORTOU CAÍSSE?
Nunca mais seria visto o mais belo altar barroco do Brasil. Jamais poderia ter sido recuperado.
Excelente apanhado histórico, e também prescritivo. De parabéns os autores.
Antes de comentar o artigo, queria dizer a Lilia que ela sabe bem que em história não existe “se”. E que o risco faz parte da vida cotidiana e não se pode deixar de ousar com medo de riscos. Vi a exposição do altar do Mosteiro de São Bento no Museu Guggenheim. Algo espetacular! Quantos, que nunca terão oportunidade de vir a Olinda, puderam ver o inusitado de um altar inteiro exposto em um museu!
Aos autores do artigo, reconheço o mérito de dizer tanto em tão pouco espaço. Porém (ai, porém…) o que a Fundação Joaquim Nabuco está devendo, há muito, é dar VIDA aos tantos acervos bons que ela guarda. Quando fui presidente do Centro Josué de Castro (2008/2009), tomei as providências cabíveis junto aos sócios do Centro e à família de Josué de Castro, que havia doado àquele Centro de Pesquisas o acervo do médico/sociólogo, para que este acervo fosse transferido à Fundação Joaquim Nabuco. E assim foi feito. Lá, foi concluído um trabalho de restauração da rica correspondência de Josué de Castro que havíamos principiado no nosso Centro. E depois?
Acervos não são arquivos mortos. Há que lhes dar vida através de projetos de pesquisa, exposições, palestras, debates. Isso está devendo a Fundação Joaquim Nabuco à sociedade.
Lindo artigo. Aliás, por grande quantidade de fotos magníficas publicadas no Facebook pelo economista Gustavo Maia Gomes, fico sempre admirada como Pernambuco consegue preservar e cuidar de um patriônio arquitetônico de séculos passados. Não daria para explorar mais como “turismo cultural”? Turismo de “educação histórica”, como fazem os europeus?