A “Terceira Decisão Histórica” do Partido Comunista da China adotada pelo pleno do seu Comitê Central na semana passada se deu numa sociedade inteiramente diferente da primeira decisão histórica, de 1945, quando Mao Tse Tung fundou a República Popular da China, em um país de uma economia essencialmente agrária. A sociedade chinesa de hoje tem pouco a ver com aquele país atrasado, embora o modelo de ditadura do partido único continue inalterado, e até tenha sido reforçado nesta era de Xi Jinping. Antes, a China era um país de camponeses, hoje é dotado de uma expressiva classe média, com padrões de consumo de bens e serviços sofisticados.
A China saiu de uma economia centralizada que copiava o modelo soviético nos tempos de Mao para adotar um modelo definido como “socialismo de mercado”, no qual combina “a economia monetária típica do capitalismo com o keynesianismo e a planificação soviética”, para utilizar a definição de Elias Jabour, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Com pequenas variações, o modelo também foi implantado com sucesso no Vietnã e tem como traços distintivos da experiência da União Soviética a coabitação entre um setor privado da economia e o setor estatal. Em outras palavras, combina o planejamento estatal com as leis do mercado, sujeitos às suas intempéries, como inflação e quebra de empresas.
O pai da China moderna, Deng Xiaoping, conseguiu imprimir no seu país as reformas que Alexei Kossyguin tentou imprimir na metade dos anos 60 na União Soviética, e foi bloqueado pela burocracia capitaneada por Leonid Brejnev. A crise terminal da antiga pátria-mãe do socialismo ocorreu porque Mikhail Gorbatchov demorou e quando tentou reformar e modernizar a economia do seu país era tarde demais. A Rússia tinha perdido a corrida tecnológica, em função de seu modelo de centralização estatal ineficiente e gerador de distorções.
Os ventos renovadores na economia não chegaram até o modelo político. A primavera chinesa morreu com o massacre da Paz Celestial, em 1989. Ali Deng deixou claro que o Partido Comunista não abriria mão do monopólio do poder e que a “ditadura do proletariado” era inegociável. A contradição entre abertura na economia e regime político fechado permanece até hoje e foi reforçada no último pleno da instância máxima do PC Chinês.
Ao alçar Xi Jinping à condição de “líder essencial” – status antes só concebido a Mao Tse Tung e Deng Xiaoping – o PC volta a mergulhar nas águas profundas do culto à personalidade. Essa prática foi violentamente criticada por Nikita Kruschev no seu célebre discurso do vigésimo congresso do PCUS, quando denunciou os crimes de Joseph Stalin e o culto ao então “guia genial dos povos”. Xi engrossa agora uma lista de semideuses do socialismo real: Stalin na URSS, Mao na China, Henver Hodja na Albânia, Fidel Castro em Cuba, Ceaucescu na Romênia e Kim Il Sung, na Coreia do Norte.
O culto à personalidade na China tinha sido duramente golpeado quando Deng ascendeu ao poder no final dos anos 70, e implantou um modelo pautado mais na direção coletiva e menos no culto ao seu principal dirigente. O “segundo timoneiro” da revolução chinesa – o primeiro foi Mao – inaugurou o modelo do “socialismo com características chinesas”, e lançou as bases para a China se tornar a segunda potência mundial, por meio do seu programa das quatro modernizações.
Sofreu na pele os horrores da Revolução Cultural, quando foi destituído de seus postos, e conhecia profundamente os desastres provocados pelo “Grande Salto para a Frente”, dos tempos de Mao Tse Tung. O culto ao “pensamento do camarada Mao” entrou em desuso, e seus erros foram apontados pelo novo líder e pai da modernização da China. Seus dois sucessores – Jiang Zemin e Hu Jintao – mantiveram o dispositivo constitucional adotado na era Deng, que limitava o tempo de permanência no poder do presidente a dois mandatos.
Não deixa de ser uma ironia que a reabilitação de Mao e a reintrodução do culto à personalidade tenham acontecido na presidência de um filho de uma das vítimas da Revolução Cultural. O pai de Xi Jinping, Xi Zhongxun, foi um dos heróis da Grande Marcha dos anos 30 e um dos fundadores da China Comunista. Crítico do “Grande Salto para a Frente” pagou caro por sua moderação, sendo preso e expurgado do Partido Comunista por diversas vezes, a última delas na Revolução Cultural.
A “Terceira Decisão Histórica” do PC chinês, tomada na semana passada pelo Comitê Central, equiparou Xi Jinping a Mao e Deng, além de abrir a possibilidade de conquistar um terceiro mandato. Com a alteração, está aberto o caminho para ser o presidente da China até o fim de sua vida. Poderá, assim, ser um ditador perpétuo, como foram Stalin, Fidel e outros líderes do “socialismo real”. O Partido Comunista da China recém completou cem anos e tem sua imagem fortalecida por ser visto por boa parte dos chineses como fator de unidade nacional e de, sob sua égide, ter retirado milhões de pessoas da miséria.
Xi Jinping é beneficiário direto desse fenômeno. Em seus anos de governo, emergiu na China uma grande classe média, e sua economia, antes pautada em uma mão de obra barata para competir no mercado externo, se sofisticou. Hoje direciona-se mais para o mercado interno e para a inovação tecnológica.
O culto à sua personalidade tem, portanto, uma base material, assim como o culto a Stalin tinha como base a transformação de uma Rússia atrasada e agrária em uma sociedade industrializada e uma potência mundial na Segunda Guerra.
Sim, a China se sofisticou, mas, do ponto de vista ideológico, a cabeça de Xi Jinping continua de granito. Para ele, a culpa da ruína da União Soviética está no processo de desestalinização patrocinado por Kruschev e esse foi um dos motivos para o conflito sino-soviético dos anos 60. Diga-se, de passagem, os comunistas chineses nunca engoliram as críticas a Stalin. Mao dizia que o ditador soviético tinha acertado em 70% e errado em 30%. Os acertos, assim, o absolviam de seus erros
É com essa métrica que o terceiro timoneiro da China socialista vê o período de Mao Tse Tung. Para Xi, criticar o Grande Salto para Frente, a Revolução Cultural e apontar os crimes de Mao é pôr em risco o monopólio do poder em mãos dos comunistas e o próprio regime.
Nos tempos do fundador da China comunista, o PC dizia que o pensamento de Mao Tse Tung representava a terceira etapa, colocando-o no patamar de Marx e Lenin. Agora, o comitê Central do PC aprovou uma resolução na qual define o pensamento de Xi Jinping como o “marxismo do século 21”.
Esse marxismo combina o “socialismo de mercado” (sujeito a intempéries como quebra de empresas e inflação) com a ditadura do proletariado. O quanto esses dois fatores coexistirão em uma sociedade cada vez mais complexa é algo para a história esclarecer.
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