O dragão da inflação (autor não identificado).

 

Inflação é o nome dado ao aumento generalizado dos preços em um sistema econômico. É reconhecida como passível de existência em todo sistema econômico monetizado. E, excluídas as tribos que não tenham adotado o modus vivendi do autodenominado mundo civilizado, todo sistema econômico é monetizado. A moeda não faz parte da natureza e inflação, como tal, não é um fenômeno natural. É fenômeno econômico e social, decorrente de trocas, transações entre agentes econômicos (pessoas, empresas, organizações). Inflação se traduz em crescente número de unidades monetárias para a compra de uma dada cesta de bens, a cada vez que se vai às compras: é perda de valor da moeda. Ou seja, inflação e perda de valor da moeda são duas faces do mesmo fenômeno. Em princípio, seria controlada pelos governos, por meio da autoridade monetária (“banco central”). É frequente sair um tanto do controle e há mais de século tem tido proeminente impacto nos sistemas econômicos. Quando sob pleno descontrole – hiperinflação – traz imenso sofrimento à população, como registra a história. Inflação pode ter se tornado necessidade, inevitabilidade. Uma certa dose pode ser “remédio”. Outra dose pode ser veneno. Questão de intensidade. Em países subdesenvolvidos, mais tolerantes, a exemplo do Brasil, uma inflação anual de até 15%-20% chegou a ser considerada “boa”. Em países desenvolvidos, que já desistiram da meta de inflação zero, 5% ao ano é o teto (a não ser alcançado). Vive-se um momento de expansão da inflação, no Brasil e em muitos membros da comunidade internacional de nações, o que aumenta a falsa renda e leva a decorrente acréscimo de imposto sobre patrimônio. 

Apesar da secular preeminência da inflação na economia, tem passado sem o devido registro na literatura, quer científica, quer dirigida aos não iniciados, que a inflação tem poder de mudar a natureza do imposto sobre a renda, instituição universalmente adotada. 

Imagine-se – por exemplo – o caso de um jovem camponês que tenha aplicado mil unidades monetárias (ums) de seu país, no último dia útil de 2019. A aplicação escolhida apenas corrigiria a inflação, que veio a ser 10% no primeiro ano. Então, no último dia útil de 2020, o camponês buscou resgatar o valor de mil e cem ums. Todavia, o saldo a resgatar era de mil e oitenta e cinco ums.   

Era um jovem inexperiente, mas recém-saído de um excelente curso secundário. Explicou ao atendente que havia escolhido aquela aplicação porque não lhe dava nenhuma renda, mas era absolutamente garantida a plena e correta correção da quantia aplicada. Você ganhou renda, sim, disse o atendente. “Aplicou mil ums e seu saldo é de mil e oitenta e cinco ums. Como não houve ganho de renda?”. O investidor retruca: minha colheita foi, nestes 12 meses, excepcionalmente boa, fui à cooperativa agrícola, que vende os produtos para nós agricultores, a preços fixos, corrigidos pelo índice oficial de inflação. Fiz o orçamento do que meu irmão iria precisar para seu primeiro ciclo de uso da gleba que lhe seria confiada. Chegava a mil ums. Apliquei de forma que agora poderia lhe entregar o montante de que necessita, para cultivo e primeira colheita. Hoje, ele precisa de mil e cem ums, valor corrigido pela inflação. Exatamente por isso fiz a aplicação. Mas o índice aplicado ao meu capital foi menor, agregando apenas oito e meio por cento, em moeda que, passado um ano, havia perdido valor. O atendente aduziu: é que de sua renda de cem ums foi subtraída a fração de 15%, referente ao imposto de renda.

“Imposto de Renda? Como, se não tive renda? Fiz questão de apenas manter a capacidade de comprar os mesmos itens na cooperativa um ano depois da aplicação. Vocês estão me ludibriando, quero falar com o gerente”. O novo interlocutor, imbuído de sua posição hierárquica, argumentou que talvez o cliente não tivesse conhecimento especializado para assegurar o que estava dizendo. Discorreu: o governo tem um centro técnico, que trata dos projetos de lei, principalmente os referentes a tributos. São peças produzidas e usadas por pessoas instruídas, depois de discutidas e aprovadas no Parlamento, e todos consagram o uso pacífico do termo renda aplicado a ganhos como o que você teve. “Mas não tive ganho algum, só tive correção para manter a capacidade de compra. Onde está o ganho se só haveria manutenção da capacidade de compra?”. Dois mundos com posições antípodas. O argumento da autoridade e o argumento da razão. “Bem, você pagou 15 ums de imposto, é a lei. Se não manteve a capacidade de comprar o que queria é um problema seu e não podemos resolvê-lo. Contrate um advogado tributário” – o gerente bate o martelo. Soou como gozação.

De volta pra casa, o jovem camponês buscou seus amigos, para um papo regado a cerveja. Verbalizou seu raciocínio: o imposto sobre a propriedade foi de 1,36% (15 dividido por 1.100) porque a inflação anual foi 10%. Tivesse sido 20%, a incidência teria sido de 2,5% (30 dividido por 1.200). É incidência de imposto sobre a propriedade. No caso, legalmente tratado como imposto de renda, cujo impacto varia de acordo com a inflação. Imagine, disse para finalizar, uma tal de meta para a inflação era de 4,5% para o período em que foi 10%. O governo não controla a inflação e eu pago um imposto, maior, sobre a propriedade maior por conta disto. Quanto mais descontrolada a inflação, mais imposto eu pago. Eu só levo na cabeça. Se me descontrolo no cultivo, perco renda. Se o governo não consegue controlar o processo de perda do valor da moeda, pago mais imposto sobre a propriedade. [De fato, se o capital aplicado recebe remuneração que apenas corrige a desvalorização da moeda, não há ganho concreto, real. Isso só se daria se o ganho nominal superasse a inflação. Aí, sim, haveria – só no excedente – base concreta para incidência do imposto sobre renda].

Logo veio outro relato pedagógico, de um dos amigos. “Meu tio está em palpos de aranha”. Aos vinte, ele e os oito irmãos deram início ao cultivo de nove glebas. Houve uma grande seca na região, mas, por imensa sorte, choveu o suficiente na área em que tinham suas glebas. A safra foi boa e os preços dispararam porque foi pequena a produção agrícola na região. Do que receberam, subtraído o necessário para viver e para o cultivo por mais um ano, restou alentada quantia. Valor aplicado pelo tioúnico dos irmãos com acesso ao sistema bancárioem dois quilos de ouro, deixados na forma escritural, no próprio banco. Há pouco, ele já aos oitenta anos, os irmãos – mais moços – faleceram em acidente aéreo e os respectivos herdeiros pediram seus nacos do valor dos dois quilos de ouro. O quilo do ouro, corrigido pela inflação oficial dos últimos 60 anos, estava valendo um bocado menos do que quando fora comprado. O gerente do banco sugeriu: “por que não autorizar ordem para venda do ouro quando este atingir valor igual ao corrigido, já que há perspectivas de aumento do valor do ouro?” 

Assim foi feito. E, algum tempo depois, semana passada, recebeu o aviso. O ouro havia sido vendido pelo preço corrigido. Avisou aos sobrinhos e foi ao banco. Devia repassar aos sobrinhos o valor correspondente a um total de oito nonos de dois quilos de ouro, ou seja, um quilo e 778 gramas (oito porções de “2.000 gramas divididas por 9”). Mas, o valor que recebeu só correspondia a um quilo e 750 gramas. Recebeu menos do que teria que pagar aos herdeiros, ficara sem nada e ainda ficara devendo. Os herdeiros reclamavam o que por direito entendiam lhes pertencer, mas o banco entregou menos do que isso. Voltou ao banco. O gerente explicou: foi imposto pago pela renda que ganhou. “Como ganhei?” Nada ganhara. “Mostre-me o extrato dos ganhos de renda que tive”. Não temos isto registrado, devolve o gerente. O senhor quer dizer que ao longo dos 720 meses o banco pagou renda e não registrou?” Não, de fato não ganhou renda mensal. Teve rendimento como ganho de capital. O ouro, há 60 anos comprado por uma ninharia, é agora essencialmente ganho de capital. “Como pode o próprio ouro ter virado ganho de capital, qual ganho de capital, se agora revertendo compra em venda repasso ao banco exatamente 2 quilos de ouro?” Desculpe, mas não estou aqui para discutir besteira – segue, implacável, o gerente. O senhor pagou 15% de imposto sobre o ganho de capital, apurado da forma como a lei manda. Ponto. Se tiver dúvida, vá à justiça. 

No mundo inteiro é assim, muda a língua usada, mas cobra-se imposto de renda sobre a ilusão de ganho que a correção monetária representa. Cobra-se como renda em aplicações financeiras, cobra-se como ganho de capital em aplicações em ações de empresas ou em capital físico, como numa casa. 

Estou estudando economia, pela internet, e vi que é assim, disse um terceiro. Só em fundos de investimento há no Brasil 6 trilhões de Reais, o correspondente a 80% do PIB. Isso gera uma boa dose de imposto sobre a propriedade na forma de imposto sobre correção monetária, que é ganho ilusório, além do imposto sobre o verdadeiro ganho, o real.

O jovem camponês gritou: “Vou tentar deixar de ser camponês. Vou estudar para ser doutor. Se conseguir, que bom. Vou dizer, isto é um imposto de renda. Se discordar, contrate um advogado”. Vai ver que todos os relacionados à questão estarão do lado da autoridade. 

Ou seja, um mundo em que um camponês procuraria alçar vôo no campo da educação – não para buscar, mas para derrotar a razão e a verdade. Quando se paga imposto sobre rendimento de bens, parte do imposto – às vezes todo – é, em geral, sobre mera correção pela perda de valor da moeda e vem a ser imposto sobre a propriedade. Saiba-se que, mundo afora, geralmente não é adotado um índice oficial de inflação, não se podendo identificar, para efeitos fiscais, que fração da “renda” é apenas correção monetária. Mas, paga-se imposto sobre a propriedade – mesmo sem se saber exatamente quanto. É como fazer uma viagem de automóvel. Você pode não saber exatamente quanto gastou de combustível entre os pontos de origem e destino. Mas sabe que gastou. E, no momento em que a inflação está em curva crescente, a decorrência é elevação da incidência do imposto sobre a propriedade.