Stefan Zweig e sua esposa, mortos by Eduardo Souza.

Costumo pensar que se pode dizer de certos livros o que disse La Rochefoucauld das pessoas: umas chateiam com virtudes, outras agradam com defeitos. Se olharmos de perto para “Brasil, um país do futuro”, um óbvio clássico de qualquer brasiliana que se preze, logo veremos que mais parece um livro de fundo de gaveta. Não digo que Zweig (Viena, 1881 – Petrópolis, 1942), um dos mais famosos autores europeus da primeira metade do século 20, escreva mal. Pelo contrário: escreve bem e até nos transmite a própria felicidade com que viu o Brasil. Enfim, “Brasil um país do futuro” nos agrada com seus defeitos, com um certo à vontade de textos que foram convocados a integrar a obra: relatos de viagem, visões líricas, impressões de cidades, textos que ora se alongam, ora se encurtam ao sabor da memória e das observações do escritor. Ao fim e ao cabo, teremos saído de sua leitura como de uma aula sobre o Brasil, mas aula de altos e baixos a despeito de ser uma aula vibrante e emocionada.

Dispensável lembrar que Zweig deixou a Europa por causa da Segunda Guerra Mundial, tendo encontrado no Brasil não só um acolhedor refúgio como também, “grosso modo”, os antípodas da cultura ocidental que literalmente ardia na Europa. Daí o título otimista de seu livro. Daí apontar em nossas características e em nossas riquezas naturais um potencial que só o futuro poderia desdobrar por completo. Também não é preciso dizer que o autor escreve numa época em que o País se move numa efervescência modernizadora e modernista, passando de agrário a industrializado, mudando sua sensibilidade estética e a própria autocompreensão de si mesmo, tal se nota em obras como as de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda.

O sumário do livro trai, por assim dizer, a paixão zweiguiana pelo Rio de Janeiro, então capital da República. Após os capítulos iniciais dedicados à história, à economia e à cultura brasileiras, o autor se deixa enamoradamente dominar pelo Rio em sete capítulos consecutivos; depois nos fala de São Paulo, das cidades históricas de Minas e, por fim, da Região Norte do País, onde se detém, sem maior profundidade, na Bahia, no Recife e no Amazonas, num capítulo significativamente intitulado “Sobrevoando o Norte”. Como se vê, o escritor não se debruça sobre os estados do Sul, provavelmente porque não os conheceu ou porque sabia, inconsciente ou conscientemente, que entre eles encontraria uma atmosfera a seu modo europeia.

Se o exitoso livro de Zweig (teve inúmeras edições no Brasil e no exterior) nada valesse (o que claramente não é o caso), salvar-se-iam de seu texto as páginas que dedica ao Rio de Janeiro e que praticamente ocupam quase metade da obra. Que poetas brasileiros terão escrito tão bem sobre o Rio? Pouquíssimos. A inspiração zweiguiana sobe o tom já na introdução do livro: “Chegamos ao Rio: foi uma das impressões mais poderosas que eu experimentei em toda a minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, estremeci”. Páginas adiante, o louvor se desdobra: “Uma vida inteira não seria suficiente para um artista que quisesse representar o Rio em sua totalidade com todas as suas milhares de cores e cenas, pois aqui a natureza, em um capricho único de prodigalidade, concentrou em um só espaço todos os elementos da beleza paisagística que normalmente distribui com parcimônia e aos pouquinhos por países inteiros”. A exaltação vai num crescendo amoroso, entre o êxtase e a exatidão: “Não importa para onde o olhar se dirige: no Rio sempre encontra algo para se deleitar. Não existe cidade mais bela no mundo”.

A certa altura, como numa espécie de sociologia lírica, o autor vienense se sai com esta: “[…] é mais fácil ser pobre aqui do que em outra cidade grande […] a beleza é para os olhos de todos […] e é infinita a diversidade daquelas pequenas surpresas diárias que nos tornam felizes sem que saibamos por quê”. Segundo ele, o Rio de Janeiro oferece uma “[…] incomparável duplicidade de cidade e paisagem, do que é secular e é eterno”. E termina por nos lembrar, com sensatez, que “[…] a força da natureza não suprime os contrastes, mas os suaviza”.

Paro aqui, não por falta de matéria, mas por excesso dela. O livro de Zweig pouco ou nada tem a ver com o futuro, mas com o então presente do país que escolheu para viver e amar. Nesse presente, com as lentes do otimismo, sua visão do Rio é a cereja do bolo. Cereja que, como se vê pelas amostras que trouxemos acima, é só doçura, de uma doçura que hoje afronta, com finura e elegância, o amargor que vai tomando a vida nacional.