Rachmaninoff - autor não identificado

Rachmaninoff – autor não identificado

 

A Rússia é uma cena de teatro. Às vezes, como tragédia. Outras vezes, carregada de romantismo. Sempre tive vontade de conhecer a praça Vermelha. Ela separa o Kremlin, cidadela real, e o bairro de Kitaygorod. É tombada como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Seu nome não decorre dos tijolos que a circundam. Nem da cor que identifica o comunismo. Mas porque a palavra russa krasnaya pode significar vermelho ou bonito. No caso, é usada no atributo de bonita. Nunca consegui chegar à praça Vermelha. Visitei São Petesburgo.

Os russos são exímios na música, na literatura e no ballet. Semana passada, tive a chance de assistir, na tv, as biografias do compositor e pianista, Rachmaninoff (1873-1943). E do violoncelista e maestro, Rostropovich (1927-2007).

Rachmaninoff foi um romântico. Largo, como as estepes russas. Forte, como a correnteza do Volga. Seus três concertos para piano são arquiteturas musicais. De reconhecida qualidade. O concerto nº 2 quebra a linha de tradição de lirismo do concerto nº 1. Introduzindo um tom mais moderno. O concerto nº 3 abriga fidelidade ao romântico e acena para o modernismo que viria com a aurora do século 20.

Na verdade, são peças lapidadas. Profundamente elaboradas. De notável beleza. Força melodiosa. De tal modo que, por sua lealdade ao romantismo, seus concertos passaram a ser menos gravados. Sua última peça, Rapsódia sobre um Tema de Paganini, é um planeta que salta os escombros do Império russo. E conecta sua construção com o drama desencadeado pela revolução bolchevique. É um hino à paixão da alma humana.

Após a revolução de 1917, ele refugiou-se em Estocolmo com mulher e duas filhas. Sua música foi banida do país. E, em 1919, ele foi residir nos Estados Unidos. Lá, fez uma carreira de pianista. Cumpriu intensa agenda de concertos. Conseguiu uma confortável situação financeira. Não voltou mais a sua terra natal por razões políticas.

Por sua vez, Rostropovich é considerado um dos maiores violoncelistas do mundo. Sua precisão como instrumentista e sua sofisticação na execução o distinguiram no cenário musical. Ficou conhecido como defensor dos direitos humanos, recebendo prêmio da Liga Internacional. Acolheu, em sua casa, nos arredores de Moscou, em 1970, o escritor dissidente, Solzjentisyn. O que provocou a ira do regime. Que inaugurou uma perseguição tenaz ao maestro.

A partir de então, Rostropovich foi impedido de exercer o cargo de maestro. E de viajar ao exterior. A apresentação de seus concertos só era permitida em cidades do interior. Em 1974, a Unesco o convidou a participar da comemoração da instituição num grande concerto público junto com Yehud Menuhin, em Paris. O governo russo proibiu a viagem. A direção da Unesco ameaçou denunciar o veto. O governo voltou atrás. O maestro fez o concerto em Paris.  E exilou-se em Nova York.

Sua estadia nos Estados Unidos foi estrondoso triunfo. Reconhecendo seu talento. Recebido na Casa Banca por três presidentes da República. Apresentando-se nas mais qualificadas casas de concerto norte-americanas. Retornou à Rússia a convite de Boris Ieltsin, em 1990. Em 1993, regeu a Orquestra Sinfônica Nacional na praça Vermelha para uma multidão. Na época da repressão.

Rostropovich foi, ao mesmo tempo, um gênio, que sabia cultivar girassóis de primavera, nas cordas do violoncelo. E foi um urso siberiano, lúcido, insurgente, na defesa dos direitos humanos. Transcendente na sua pluralidade, ele concretizou, a cada gesto, maravilhosa obra metamorfose humana.

Começamos na praça Vermelha. E concluímos na praça Vermelha. E Stalin? E Putin? O totalitarismo, nas versões do século 20 e do século 21, como disse Hannah Arendt, é a falta de pluralismo político. Onde não se conta com o respeito à soberania dos povos e aos direitos humanos.

Mas, na perspectiva do tempo democrático, as brumas do horror totalitário terminam desaparecendo. São extintas, absorvidas no lixo da história. E sobrevive o que, de mais sensível e inteligente, representa a vida. Na sua expressão mais bela. Por isso, os regimes totalitários findam. E os concertos de Rachmaninoff e de Rostropovich seguem sendo ouvidos. No compasso perene de mãos abertas em generosidade.

Fecho com Maiakovski:

“Costurarei calças pretas com o veludo da minha garganta e uma blusa amarela com três metros de poente. Pela Niévski do mundo, como criança grande, andarei, dom juan, com ar de dândi”.