Foi no já distante ano de 1969, em plena vigência do Ato Institucional nº 5, apertando ainda mais os grilhões da ditadura, que, jovem repórter da Revista Manchete, recebi uma tarefa não muito fácil de ser cumprida. Eu deveria tentar me internar como “noviço” no Mosteiro de São Bento, em Olinda – conviver com os monges no seu  dia a dia – e depois relatar tudo isso numa reportagem. De preferência, sem revelar para o Superior da Ordem, Dom Basílio Penido, que eu não tinha qualquer pretensão em seguir uma carreira religiosa – mas era um repórter que ia vasculhar a vida e a intimidade do Mosteiro.

– Qual a razão de uma reportagem como essa?

– Em primeiro lugar, pelo exemplo de participação na vida do país que davam os monges dominicanos, em São Paulo.

Eles denunciavam, tanto quanto podiam, as arbitrariedades do Governo Militar, os casos de tortura conduzidos pelo delegado Sérgio Fleury – exemplo de crueldade responsável por tudo quando aconteceu nos porões do Doi-Codi, em São Paulo, onde foram assassinados vários adversários do regime. Inclusive o jornalista Vladimir Herzog. Depois, corriam à boca pequena alguns boatos, segundo os quais o Mosteiro de São Bento também havia recebido e protegido pessoas que se escondiam do Regime, até que pudessem deixar Pernambuco de forma segura. Claro que isso, se verdade fosse, não iria ser registrado – afinal estaria ali um repórter, tanto quanto possível fiel à verdade, mas nunca um “dedo-duro” a serviço de uma ditadura que prendia, torturava a matava. A quem o repórter também criticava.

Teriam fundamentos aqueles boatos? Qual a diferença entre dominicanos e beneditinos? Tremendo de medo, procurei Dom Basílio Penido, disse para ele a verdade e, intimamente, torci para que o abade recusasse – que não aceitasse um jornalista, sem muita fé religiosa, participando da vida comunitária do Mosteiro. E depois escrevesse o que bem entendesse dessa experiência. Para o bem e para o mal, Dom Basílio Penido me aceitou.

Estávamos numa semana pré-carnavalesca – e na quarta-feira desta semana começou meu retiro. Levei comigo poucas coisas: algumas mudas de roupa, artigos para higiene pessoal e um livro recém-lançado de Jorge Amado, que recebia grandes elogios da crítica literária: “Gabriela, Cravo e Canela”. Combinei com o fotógrafo da Revista, Raimundo Costa, que durante o dia eu ia procurar caminhar pelas dependências externas do Mosteiro, e ele, de longe, faria as fotos que fosse possível fazer – usando as teleobjetivas mais poderosas do seu equipamento. O Jardim do Mosteiro era imenso, parte dava para as ruas, não era difícil fazer ali algumas fotos.

Jantei com os monges já nesse primeiro dia e, durante o jantar, minha primeira surpresa: após as orações de costume, a descontração era geral. Havia um microfone no refeitório onde falava quem quisesse ou tivesse algo para compartilhar, tocava-se violão, contavam-se histórias, enfim… não havia restrições para a comunidade. E nessa primeira noite, durante o jantar, encontrei ali, entre os monges, um ex-contemporâneo da Universidade Católica, que também estudara jornalismo, cujo nome religioso era Hildebrando. Ou Dom Hildebrando.

Surpresa para ele, me ver ali. O que pegou mal nessa primeira noite foi quando um dos irmãos hospedeiros me levou até minha cela, onde eu ficaria alojado. Era um aposento simples, com uma cama modesta, um abajur que me permitia ler até determinada hora, quando todas as luzes do mosteiro seriam apagadas. É que nessa minha cela estavam sepultados os corpos de dois monges – como era da tradição da irmandade.

E eu, que sempre tive medo de fantasmas, fui deitar-me olhando para o túmulo de cada um. Para meu consolo, pelo medo e o cansaço, nenhum barulho perturbou o meu sono. E fui ficando, de dia caminhando só, pelas dependências do Mosteiro, passeando pelos jardins, admirando aquela construção tricentenária que resistia ao tempo, visitando a biblioteca, até quando pedi a Dom Basílio que me reservasse uma hora para que pudéssemos conversar. Era um religioso excepcional, dom Basílio Penido. Carioca do Posto Seis, em Copacabana, por onde costumavam desfilar as mulheres mais bonitas do Rio de Janeiro, além de membro de uma família na qual muitos dos homens seguiram a carreira militar – Dom Basílio largou tudo isso pela determinação de sua fé e seu desejo de servir a Deus. Era também médico, formado pela melhor Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, falava com fluência várias línguas, ainda na infância já dominava o francês. (Numa das vezes em que estávamos nós dois conversando, Dom Basílio foi chamado por outro monge para atender a um irmão nonagenário, que não estava bem de saúde. E havia muitos monges com mais de 80 anos naquela comunidade).

Também descobri, nas nossas conversas, que o Abade do Mosteiro de São Bento era amigo e confidente do Arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara, naquele tempo já na  “lista negra” da ditadura militar, que ele criticava veementemente quando fora do Brasil, já que aqui a censura não permitia isso. Falava-se, nos meios católicos, que Dom Helder também não tinha qualquer relacionamento com os padres jesuítas em Pernambuco, especialmente com a comunidade da Universidade Católica e do Colégio Nóbrega – que não se subordinavam ao Arcebispo. (Nos anos em que fui aluno da Universidade Católica de Pernambuco, Dom Hélder jamais apareceu nas suas dependências, embora o Reitor, Padre Aluísio Mosca de Carvalho, fosse um homem de fino trato e incapaz de um gesto grosseiro. Mas isso já é outra história).

Passei mais algum tempo vivendo minha vida semelhante a um noviço: acordando cedo, participando de algumas orações comunitárias, almoçando e jantando nos horários estabelecidos, procurando obedecer a todas as ordens e todo o ritual católico de uma comunidade cristã alicerçada pela força, pela fé, pela fraternidade – por todos os valores éticos e morais que os beneditinos pregavam e praticavam.  Não vi, lá dentro, nenhum “padre comunista” a quem a imprensa engajada se referia; se críticas havia aos excessos da ditadura, eram na justa medida que elas eram feitas por qualquer cidadão democrático; os beneditinos, de certa maneira, nada tinham, politicamente, dos seus irmãos dominicanos, profundamente comprometidos com algumas células do Partido Comunista, à frente Carlos Marighella.   

Um certo dia,   concluí que nada mais tinha a fazer naquele isolamento, já era tempo de arrumar minhas poucas coisas, agradecer a Dom Basílio e, com o mesmo silêncio com que cheguei, fechar minha cela, entregar a chave ao irmão hospedeiro e  partir. Era uma manhã de segunda-feira, lá fora o sol brilhava, pessoas subiam e desciam a ladeira do Mosteiro – algumas olhavam rapidamente para aquele jovem magro de mala na mão, trazendo no rosto um sinal de tristeza, e na sua consciência, a certeza de que jamais iria esquecer tão rica experiência na sua vida nômade e incerta, que, na sua condição de jornalista, apenas começava a acontecer.