O que deixamos para trás é muitas vezes o que tínhamos de fato pela frente, mas de uma forma confusa e “naturalizada” e que, à certa altura, nos esquecemos de cuidar, porque simplesmente passamos, ao longo da vida, a guardar coisas das quais não nos damos conta. Aí está: acumulei frases, mas o sentido não está, por assim dizer, “arrumado” e claro. Ficará daqui por diante, pois falarei do livro “O que deixamos para trás: a arte sueca do minimalismo e do desapego”, da artista plástica Margareta Magnusson, recém-lançado no Brasil e originalmente publicado em 2017. Parece autoajuda. “É, pode ser”, como diz o colunista Ancelmo Góis.
Um dos achados da autora é tocar no tema tabu da morte, pelo menos para os não suecos. Entre os brasileiros, por exemplo, o silêncio é a regra, embora, como disse Benjamin Franklin, só tenhamos de certo nesta Terra “a morte e os impostos”. Para os suecos, realça Margareta, existe o que se chama “a limpeza da morte”, que não significa mais que “Livrar-se de coisas desnecessárias e fazer do seu lar um local agradável e organizado ao se dar conta de que seu tempo neste planeta está acabando”. Isso, na língua sueca, chama-se “döstädning” e, claro, vai de encontro ao que passamos a vida inteira fazendo: acumulando coisas, muitas das quais tornadas completamente inúteis e esquecidas. Enfim, se nos livrarmos dessa tralha que “naturalizamos”, viveremos melhor, de forma mais organizada, e pouparemos a nossos herdeiros um tempo precioso. Mas a impronunciável palavra sueca não deve ser associada apenas ao fim da existência; deve, sim, ser usada para uma limpeza completa, quando nos desfazemos “de objetos com a intenção de deixar a vida mais simples e menos tumultuada”.
Dizer adeus a vários pertences, reconhece Margarete, não é nada fácil, sobretudo porque são perpassados de sentimentos. Com razão, Marcel Proust escreveu belamente que “O amor é o tempo e o espaço tornados sensíveis ao coração”… Um dos primeiros conselhos da autora é: “Se você está em uma idade avançada, não demore muito…”. A “limpeza final” resultará em conforto para filhos e netos, evitando trabalho e disputas infelizes. Mas os familiares devem ser avisados de sua intenção, e alguns deles poderão até se beneficiar de imediato herdando alguns itens já excessivos para o seu cotidiano. Outro conselho prático: não comece por fotos e cartas, do contrário poderá “ficar preso em recordações” e sem tempo para organizar as coisas por assim dizer mais objetivas.
A meta da “limpeza final” é evitar excessos e tornar a vida mais agradável. De quebra, ao nos organizarmos mais, evitamos perda de tempo, logo achando as coisas que importam para tocar a vida. Mas, como lembra a autora, há questões difíceis na triagem a ser feita, para as quais é importante ouvir a opinião da família ou dos amigos. Valendo-se de exemplos próprios, autobiográficos, a autora sueca, que diz estar “entre os 80 e os 100 anos”, é pródiga em bom humor, e o seu livro enquanto texto espelha o minimalismo que defende. No mais, por sua experiência própria, Margareta nos lembra com frequência (sem o dizê-lo claramente) que as emoções e os sentimentos devem ser sopesados pela racionalidade. Não por acaso, a certa altura, observa que uma grande lição é a de “não guardar coisas que ninguém mais parece desejar”! No mais, posse, domínio e congêneres devem ser postos entre aspas para atingirmos um eficaz desapego. Daí a importância de saber doar com sabedoria.
Com certeza, Margareta tem razão em muita coisa, e ela própria buscou se tornar um exemplo do que prega. E que prega com leveza e suave ironia. Mas aqui pra nós: para a “limpeza” ser ótima e higiênica, assumidamente nossa, é preciso “fazer a cabeça”, esquecendo um pouco a célebre frase de Pascal, segundo a qual “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Os ganhos, porém, serão animadores.
Para concluir, um último conselho da autora, dentre tantos que ainda poderia citar, mas que talvez subtraísse ao leitor o prazer do livro. Suas sábias palavras servem a todos, mas especialmente aos mais velhos, afinal de contas é diante destes que o tempo, antes tão farto e abundante, começa a se afunilar. Diz ela: “Envelhecer não é para os fracos. E é por isso que não se deve esperar muito para começar a reduzir a quantidade de pertences. Cedo ou tarde, você ficará mais debilitado e verá como é bom poder aproveitar as atividades que ainda consegue realizar sem o fardo de ter que cuidar de seu inventário e arrumar toda a sua bagunça”.
Desapegados, uni-vos! A leveza vos espera!
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