Allende – Autor não identificado

Esse ano completam-se os 50 anos do golpe militar de 11 de setembro que derrubou o presidente do Chile, Salvador Allende. Trata-se de uma efeméride que tem gerado muita controvérsia durante muito tempo, sem uma conclusão definitiva. Antes de tudo pelo fato de que a chamada experiência chilena conduzida por Allende acalentava a ideia de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. A isso ele chamou de “via chilena ao socialismo”, uma proposição inédita de revolução socialista[2]. 

Ao cumprir 50 anos, se repõe novamente uma apropriação instrumental da memória desse episódio. A direita chilena tem manifestado uma nostalgia diante do que foi o regime de Augusto Pinochet, artífice do golpe e ditador do Chile entre 1973 e 1990. Por outro lado, a esquerda – e não apenas no Chile – tem reivindicado a figura de Allende e busca recuperar sua imagem sem fazer uma leitura crítica do seu governo, do projeto que ele encabeçava e do comportamento político dos partidos da Unidade Popular. A razão dessa postura se prende ao atual contexto anticoncertacionista, que alimenta uma espécie de revanche à “neutralização” do mito de Allende no retorno à democracia no início da década de noventa[3]. 

Como superar essas apropriações a partir de uma perspectiva que possa dar um sentido produtivo a essa rememoração?

Melancolia e nostalgia

Em primeiro lugar, seria importante afastar essa mirada nostálgica fundamentada num passado conflitivo e polarizado. O que aconteceu há 50 anos invade o presente de forma traumática. Contudo, a partir de uma visão crítica, é possível reorientar nossas reflexões sobre o que se passou. Diante de um golpe tão violento como foi o de setembro de 1973, a memoria deve cumprir, ao nosso ver, o papel de impulsionar e consolidar a ideia de um “Nunca Mais”. Mas para isso, no campo da esquerda, é preciso superar a visão melancólica no tratamento do passado, que visa promover a construção imaginária de um “outro Chile que poderia ter sido e não foi”[4].

O final do governo Allende expressa a mais profunda crise vivenciada pela sociedade chilena. Constitui-se numa ruptura histórica que sintetiza em poucas horas o fim de toda uma época. A pergunta definitiva é a seguinte: que teria ocorrido com aquela esquerda, que conseguiu manter e ampliar seu apoio eleitoral, mas não conseguiu sustentar politicamente o “governo popular”? Enfim, o que ocorreu para que o golpe se impusesse? 

Um cenário difícil e complicado

Em primeiro lugar, é preciso considerar que Allende era um presidente minoritário e que sua posse no Congresso somente foi possível com o apoio da Democracia Cristã (DC). Reproduzir esse apoio seria essencial para o êxito de Allende, mas preferiu-se seguir uma estratégia majoritária centrada no poder Executivo. Explica-se essa opção porque a política chilena da época estava dividida em três blocos – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos alternativos de sociedade. Estando no poder, se um dos blocos extremasse suas posições, o equilíbrio do sistema político tornava-se bastante precário. E nesse sentido, as reformas implementadas por Allende evidenciaram-se excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, sem negociação com o Congresso, tornou-se um problema incontornável. Era inevitável que isso geraria graves problemas Por fim, o apoio dos EUA à oposição e ao golpe de Estado, não deixam dúvidas a respeito do que se passou no Chile, transformado num dos palcos da “Guerra Fria”. 

O itinerário

O primeiro ano de governo foi bastante exitoso. Mas, a opção por um “keynesianismo selvagem”[5] que resultou no superaquecimento da atividade produtiva e na expansão dos gastos públicos, acompanhada pelo aumento nos salários no setor público e privado, logo mostraria suas consequências inflacionárias. Isso e mais o boicote norte-americano à economia chilena conduziriam o país muito rapidamente a uma situação econômica cada vez mais incontrolável.

Mesmo assim, em 1971, parecia que a aposta na via chilena poderia redundar em êxito. Mas no final do ano as coisas começam a se complicar. A visita de Fidel Castro em novembro e sua permanência por 24 dias causou uma mudança no clima político. A presença de Fidel, para quem só havia o caminho armado para a revolução na América Latina, representou um desafio aberto à via chilena ao socialismo. Fidel sabia que a ideia de transitar ao socialismo pela via democrática não era uma estratégia consensual na UP e apostou numa mudança de rumos da revolução chilena. É a partir dessa visita que se começou a falar em “guerra civil” e “fascismo”. No final de novembro, quando vieram as passeatas das “panelas vazias”, Fidel defendeu a repressão aos manifestantes, desafiando abertamente a Allende. No discurso final, no Estádio Nacional, ao lado de Allende, afirmou que o Chile não vivia uma revolução, mas um “processo insólito”.

Em 1972, as dificuldades de um acordo com a DC no Parlamento eram nítidas. Os socialistas eram terminantemente contra essa aliança, contando com o apoio de outras forças de esquerda. Abriu-se assim uma fratura na esquerda entre aqueles que propunham “acumular forças” e aqueles que defendiam o estabelecimento de um “poder popular”, vocalizando a consigna “avanzar sin tranzar”. O ambiente de antagonismo havia invadido todos os espaços. 

Em outubro de 1972, a “greve” dos caminhoneiros afetaria, por mais de um mês, o abastecimento de viveres. Esse movimento, financiado pelos EUA, representou um duro desafio ao governo. Allende viu como única solução, a despeito das críticas dos partidos da UP, a convocação dos militares para o Gabinete com o intuito de restabelecer a ordem. Isso não fazia parte da estratégia da via chilena e evidenciava que Allende sentia correr por entre os dedos os elementos essenciais do seu projeto.

Todos os esforços a partir dai foram inúteis. A DC associou-se à direita e formou a “Confederação Democrática” para enfrentar o governo nas eleições parlamentares de março de 1973, nas quais obteve um resultado satisfatório, mas insuficiente para se propor o impedimento de Allende no Congresso. Em 29 de junho, uma guarnição do exército se rebelou em Santiago numa tentativa de golpe de Estado que redundou em diversos mortos e feridos, mas acabou debelada. 

Confrontos nas ruas, greves e paralizações – inclusive em setores vinculados a UP –, além de ações terroristas passaram a ser diários. Dividida, a esquerda se digladiava entre estimular ou conter a “guerra civil” que se desenhava. Não tardaria muito para o Congresso aprovar a inconstitucionalidade do governo Allende, selando qualquer possibilidade de debelar a crise por meio de algum acordo. O golpe de Estado, como se sabe, viria em seguida.

Derrota e fracasso

Em síntese, da vitória e posse de Allende e de um primeiro ano exitoso, o sentido do conflito político evoluiu de uma certa estabilização para uma polarização cada vez mais irredutível e em seguida para o desfecho final. Entretanto, o dramático desfecho da experiência chilena não pode ser visto como uma tragédia na qual o fim já estava pré-determinado. As possibilidades de acordo entre a UP e a DC foram perdidas e a crise se instalou de forma irreversível. Também não pode ser vista como uma “experiência de laboratório” de aplicação da “via democrática ao socialismo” visto que a esquerda chilena ficou a meio caminho dela, quando não contra ela, tomando-a mais como um slogan ou como um elemento artificial de unidade e de mobilização da sua base. Atravessada por compromissos impossíveis entre duas concepções distintas, a esquerda chilena manifestava, como escreveu Tomás Moulian, uma obsessão pelo socialismo e era, além de utópica, escatológica [6].

Essencialmente, havia uma concepção e um limite na Unidade Popular: aplicar a teoria leninista do atraso como uma “vantagem” para realizar a “revolução”. O atraso chileno convivia com uma estrutura institucional de formas mais modernas de reprodução política e social. Assim, a face avançada da sociedade chilena exigia a elaboração de um caminho próprio e singular para que o socialismo fosse proposto como programa de governo. Entretanto, como observou Manuel Antonio Garretón havia um vazio teórico nas formulações da Unidade Popular [7]. 

O isolamento internacional de Allende é outro dado espantoso. Não houve apoio significativo da URSS, menos ainda da China. Allende também não buscou aproximação nem identificação com o reformismo da socialdemocracia europeia, preferindo manter-se no campo revolucionário, no qual a complicada relação com a Cuba de Fidel Castro lhe trazia mais problemas do que soluções. 

Frente aos desajustes enfrentados pelo governo Allende, especialmente no plano econômico, diante da dura oposição da direita e, por fim, da evidente desconfiança da própria esquerda em relação ao projeto allendista, a via chilena ao socialismo fracassou inapelavelmente. O fracasso da experiência chilena jogou luzes para o fato de que não se pode fazer transformações radicais sem o concurso de maiorias robustas que sustentem essa estratégia não apenas eleitoralmente – como escreveu Enrico Berlinguer semanas depois do golpe de Estado.

Uma mudança histórica

Para finalizar, o Chile de Allende representou, historicamente, um ponto de inflexão na cultura política da revolução que marcou o século XX latino-americano e mundial. Depois dele ficou clara a necessidade de superação dessa cultura política, sem a qual não se poderá enfrentar os problemas e impasses da democracia, entendida como a projeção civilizacional do nosso tempo e tudo o que isso comporta. 

O fracasso da experiência chilena demonstra que o tempo da revolução é incompatível com o tempo da política dos contemporâneos, que enfatiza compromissos e mediações. Enquanto o primeiro é marcado pela urgência da tomada do poder, o segundo reconhece que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados no interior de uma estrutura institucional democrática.

Se a experiência chilena foi uma revolução inconclusa, a via democrática al socialismo que a havia inspirado permaneceu um enigma indecifrável.

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[1] Texto da apresentação feita durante o seminário “Il Cile de Allende – uma rilettura” na Fundação Gramsci em Roma, em 30 de outubro de 2023.

[2] A expressão “via allendista” como identificadora da “via chilena ao socialismo” não faz parte do repertorio político da esquerda chilena na época. Ex-post, ela é resultante da análise historiográfica que, além da captura o pensamento de Allende, revela seu grau de isolamento em relação à Unidade Popular. Por outro lado, não há duvida que Allende foi e se comportou como um democrata em todo seu governo, mas a sua visão do socialismo não era totalmente diferente do que era, na época, o socialismo da URSS, da China e de Cuba. Formado no marxismo chileno do século XX, sua concepção nunca foi formulada como a de um “socialismo democrático”.

[3 Mansuy, Daniel. Salvador Allende, la izquierda chilena y la Unidad Popular. Santiago: Taurus, 2023.

[4] Ricardo Brodsky, “La melancolia de la UP (a propósito de los 50 años). Santiago: Ex-Ante, 23 de febrero 2023. L’espressione litterale è “un altro Cile che avrebbe potuto essere possibile”.

[5] A expressão é de Eugenio Tironi em El liberalismo real. Santiago: SUR, 1986.

[6] Tomás Moulian, “La Unidad Popular: fiesta, drama y derrota” In GASMURI, J. Chile en el umbral de los noventa. Santiago: Planeta, p. 27-41, 1988.

[7] GARRETÓN, M. A. Continuidad y ruptura e vacío teórico ideológico. Dos hipótesis sobre el proceso político chileno – 1970-73. Revista Mexicana de Sociologia, v. XXXIX, n. 4, oct./dic. 1977.