Continuamos nas águas. Depois das inundações no Rio Grande do Sul, agravadas pelo desrespeito do governo estadual às normas ambientais e pela anulação de leis reguladoras em caso de excesso de chuvas, para favorecer plantadores de soja, criadores de bovinos, madeireiros, construtores imobiliários, entre outros, agora é a vez das águas salinas do nosso litoral.

As costas brasileiras com a beleza de suas praias cantadas por músicos e poetas sempre chamaram a atenção de navegadores e turistas. E acabaram por despertar a atenção e a gula de alguns políticos, talvez impressionados com a gratuidade dessas áreas, verdadeiros lugares paradisíacos que, se bem administrados, poderiam render milhões aos seus proprietários.

Em síntese, foi assim o surgimento da Proposta de Emenda Constitucional PEC-39|2011, de autoria dos deputados Arnaldo Jordy PPS-PA, José Chaves PTB-PE e Zoinho PR-RJ. Essa proposta põe fim aos terrenos chamados de marinha, extensões com 33 metros de largura a partir da maré alta nas praias ou ilhas e da cheia nas margens dos rios, que passam a pertencer gratuitamente aos Estados ou municípios. Essa PEC já foi aprovada há dois anos pela Câmara federal e agora está no Senado, bem perto de se transformar em lei. Se houver veto do presidente Lula, mais do que provável, a PEC retornará ao Senado e só deixará de ser lei, caso haja recurso ao STF por inconstitucionalidade.

E qual o problema se essas áreas pertencentes à União ou ao governo federal, sujeitas a inundações, não são habitáveis? Ora, a imprensa em geral, os canais independentes e as redes sociais estão dando destaque porque, embora a justificativa da proposta da PEC-39|2011, agora PEC-3|2022 não diga, trata-se de uma artimanha para se chegar ao objetivo de se privatizar o litoral brasileiro e restringir seu acesso.

Em outras palavras, a proposta de emenda constitucional quer tirar do povo a utilização gratuita das praias, tornando-as pagas, tornando restrito ou pago o banho de sol à beira do mar, entrar na água e furar as ondas. Será o fim de um dos poucos prazeres gratuitos dos pobres, se bronzear e nadar numa bela praia. Os grandes empreendimentos hoteleiros, os Cancuns da vida, querem cercar as melhores praias, tornando-as privativas de seus hóspedes. Já houve no passado tentativas de condomínios de Paraty e da região de Laranjeiras de cercarem a área das praias, impedidas pela Justiça.

Mas não só os banhistas pobres de fim de semana que perderão o direito de jogar um futebol na areia, serão também proibidos os vendedores ambulantes e os donos de barracas com água, sucos e sanduíches. A privatização do litoral criará empecilhos aos pescadores, aos surfistas, impedirá o acesso às ilhas e estragará o domingo de muita gente. Impedirá também o controle ambiental de áreas litorâneas como mangues e pantanais.

O relator da PEC é o senador Flávio Bolsonaro, que nega haver a intenção deliberada de se privatizar as praias. Uma volta pelas redes sociais, exceto as bolsonaristas, mostra haver um clima de grande preocupação e a possibilidade de se mobilizar o povo contra a aprovação dessa PEC que, sem dúvida, levará ao absurdo de tornar as praias pagas. O Observatório do Clima qualifica essa PEC como Pacote da Destruição, no caso destruição ambiental.

O ex-presidente Bolsonaro sempre apoiou essa PEC, pois um de seus sonhos privatistas era o de transformar a praia de Angra dos Reis numa Cancun brasileira. Ele queria atrair sheiks árabes, artistas, milionários, jogadores de futebol, empresários, que poderiam ter sua casa à beira do mar com praia privada protegida com muros ou cerca!

Como acentuou Leonardo Sakamoto, no UOL “a praia é um dos raros espaços democráticos do país, um espaço de entretenimento em que ricos e pobres compartilham o espaço, por mais que tenha rico com nojo de pobre e que adoraria ver isso fechado. A grande tentativa dessa história é a de se lotear as praias e de a gestão delas para grupos privados. Se isso for aprovado pelo Senado será um retrocesso absurdo. Mas a tendência é ser aprovado, dado o tamanho interesse econômico nisso”.

De acordo com o advogado Thiago de Paula, doutor em Direito Constitucional, em entrevista ao canal Metrópoles, essa questão já foi tratada indiretamente pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o recurso extraordinário 636199, do qual foi relatora a ministra Rosa Weber, relacionado com a Emenda Constitucional 462005 e envolvendo ilhas de importância para o território brasileiro. No caso se considerou a regulação dessas propriedades da União como cláusulas pétreas da Constituição, que não poderiam ser modificadas.

Ou seja, se a questão das terras de Marinha for levada ao STF é certo que seus ministros considerarão a PEC como inconstitucional por ferir uma questão muito sensível do ponto de vista federativo relacionada com a segurança e a proteção ambiental das costas brasileiras.