Guimarães Rosa

Guimarães Rosa

Rosas é Clemente Rosas, paraibano de nascimento e recifense por adoção, advogado e economista, testemunha ocular da história brasileira dos últimos – por baixo – sessenta anos, e autor de Sonata de Outono, um livro que na minha biblioteca figura na estante dos “livros deliciosos”, não muito longe dos Ensaios de Montaigne, o criador do gênero. Rosa é Guimarães Rosa, mineiro de nascimento, médico por formação e cidadão do mundo por ter sido diplomata, e autor de um dos maiores livros da nossa literatura, Grande Sertão: Veredas, normalmente catalogado como romance na falta de melhor designação para uma obra inclassificável. Mas por que um match amistoso entre os dois? Porque Clemente, o Rosas, não gosta (ou gosta muito pouco) de Guimarães, o Rosa. Vamos por partes.

O livro de Clemente contém mais de uma centena (não contei na ponta do lápis) de pequenos textos distribuídos por capítulos que vão dos inevitáveis “causos”, passam por “memórias da caserna”, quando serviu o exército (depois, a “gloriosa” de 64 o tachou de comunista), e se espraiam por artigos e crônicas dando conta de suas “viagens” (com mais de 60 anos, enfrentou os rigores do altiplano andino), suas aventuras e desventuras na vida e no mar (que ama tanto quanto Caymmi amava) – e por aí vai. São tantas as rubricas que esqueci de nomear a primeira, “Eles e Eu”, uma coleção de perfis de figuras importantes da história política e cultural brasileira com quem conviveu. Figuras como, de um lado, Celso Furtado, com quem trabalhou na Sudene no governo de João Goulart, e, de outro, o general Nílton Rodrigues, nomeado superintendente da autarquia já no governo de Itamar Franco, e que confirmou Clemente no cargo que já ocupava de procurador-geral da instituição, à qual tinha sido reintegrado depois de ter sido dela expurgado nos primeiros dias de abril de 1964, quando foi preso na própria sala de trabalho. Homem de cultura, Clemente teve como amigos e interlocutores gente do naipe de Cacá Diegues e Ariano Suassuna. Aos 82 anos, Rosas termina o livro reivindicando a idade: “Velho, sim! E satisfeito!” E ainda comenta ao modo de um jurista no fim de um parecer: “Nada a reclamar” – como se quisesse dizer: nada a requerer…

Sonata de Outono é um livro que também poderia figurar numa outra estante que muito prezo, a dos livros de memórias. No Prefácio, Clemente escreve uma frase que grifei porque achei-a perfeita: “Paradoxalmente, só o passado tem permanência, como matéria de memória e sentimento.” Sou fascinado por quem consegue, como Rosas, reconstruir o passado vivido de forma vívida. Inclusive nos seus aspectos mais tristes, como é o caso de uma “mulher sem rosto [que] nem nome tinha”, que ele, menino, cruzou na feira de Cabedelo, na sua Paraíba natal. A cena em que ele descreve essa mulher pedindo esmola é um primor de exatidão e expressivismo – uma pintura feita a escalpelo. Cito-o: “A pobre criatura cobria o rosto com um pano, só deixando aparecer dois olhos aflitos, margeados por profundas olheiras. E se o estender da mão para a esmola não fosse gesto suficiente, afastava o pano e expunha sua desgraça. Não se podia mais dizer que tivesse uma face: não havia lábios, nem nariz, nem dentes, só língua, e a úvula tremelicando no fundo da garganta.” No momento em que li isso (“Uma cena de horror, como poucas vi na minha vida.”)… Ufa! Só uma interjeição é capaz de dar conta do que senti. Mas se chamei o livro de delicioso é porque é desses que se saboreiam aos poucos, e que ficam semanas como nosso livro de cabeceira; ou, no meu caso, livro de rede…

Pois não é que o Grande Sertão também entraria nessa categoria? Falo da primeira vez que o li. Desde então, reli-o faz alguns anos, e espero ainda relê-lo antes que venha a “Indesejada das gentes”, como disse Manuel Bandeira. Retrocedo ao ano longínquo de 1973. De férias em Itabaiana (a de Sergipe, Clemente!), onde nasci, pus-me a ler o cartapácio (quase quinhentas páginas) de Rosa. De início, experimentei uma resistência à linguagem rebarbativa do livro – que, aliás, começa com uma palavra cujo significado ainda hoje é matéria a especulações: “Nonada”. E tome-lhe palavras escalafobéticas! O começo foi penoso, e é bem possível que minha persistência em lê-lo tenha sido motivada pelo fato de que se tratava de um livro unanimemente incensado pela crítica, e eu, como jovem com pretensões a ser um intelectual, tenha desejado gostar do livro… Pois não é que terminei gostando? Até onde é possível se lembrar, tenho uma vaga lembrança de que aos poucos fui sendo seduzido por falares em que reconhecia dizeres da minha avó, uma sertaneja, e dos tabaréus fregueses do comércio farmacêutico do meu pai. Além disso, depois que me acostumei àquela estranha sintaxe, fui percebendo que se tratava de um grande livro de aventuras, com o Bem (encarnado por Riobaldo) contra o Mal (encarnado por Hermógenes). De permeio, uma história de amor proibida: o jagunço Riobaldo se apaixona pelo também jagunço Diadorim! Foi quando o Grande Sertão tornou-se um livro delicioso, que eu ia lendo aos pouquinhos para demorar a chegar ao fim. E o fim…

Ah, o fim! Quando o li pela primeira vez – “mire e veja”, Clemente!” – não sabia que Diadorim era mulher. Nas últimas páginas do livro, caiu-me o queixo. Diadorim morre em luta corpo-a-corpo com Hermógenes, que – bem feito! – também morre. Diadorim é desnudado para ser lavado, e Riobaldo, a princípio sem entender, escuta da mulher que lava o corpo morto do jagunço: “A Deus dada. Pobrezinha…”. É só então que Riobaldo se dá conta do tamanho da sua perda: “Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. […] Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás […]. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. […] E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo: ‘Meu amor!’” Quando li isso, jovem, me arrepiei. Foi um desses momentos de epifania que a arte às vezes nos dá.

Mas, como disse, Clemente não gosta do Grande Sertão. Num dos ensaios do seu livro – “Uma visão não-apologética” –, critica o escritor porque ele, Clemente, “não [se] situ[a] no grupo de críticos que apenas analisam o texto literário, em seu aspecto formal.” Para ele, “o que conta mesmo é o valor social da experiência transmitida, o recado que se dá.” E investe contra a postura “político-filosófica de Rosa, por ele mesmo proclamada”, a saber: a de que seus livros “são, em essência, anti-intelectuais… e defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação […] sobre o bruxulear presunçoso da […] razão” – palavras do próprio Rosa. Sobre o Grande Sertão, diz Clemente: “considerado a obra-prima do escritor, faço restrição ao seu formato: um ‘tijolaço’ de mais de 450 páginas […] com uma estrutura narrativa de vai-e-volta que confunde o leitor, além do esforço que lhe é exigido para vencer frases tortuosas, pontuadas de neologismos e jargões desconhecidos […], um desrespeito ao público, para quem, afinal, é feita a literatura.” Well… 

Confesso que estranhei esse julgamento, a meu ver incompatível com o sujeito erudito e de bom gosto como é Clemente. Para cada uma dessas objeções teria algo a dizer. Sobre o “formalismo” de Grande Sertão, suas “frases tortuosas” que seriam um “desrespeito” ao leitor, por exemplo, o que tenho a dizer é que, como leitor, eu me senti foi lisonjeado pelo que Rosa primeiro exigiu de mim, entregando de volta puro deleite depois. Isso me faz lembrar uma “Apostilha” que Umberto Eco escreveu em seguida ao sucesso mundial de O Nome da Rosa, na qual explica aos leitores algumas das opções estéticas que fez, entre elas o “fôlego” que as páginas iniciais exigiriam dos leitores. A editora tinha-lhe sugerido reduzir as cem primeiras páginas, consideradas “fatigantes”. Ele conta que recusou sem nenhuma hesitação. E explica: “Eu sustentava que se alguém quisesse entrar numa abadia e aí viver sete dias, devia aceitar o seu ritmo.” E, autoconfiante (mas, claro, ele era Umberto Eco e tinha cacife para isso), impunha uma provação ao leitor: “as cem primeiras páginas tinham uma função penitencial e iniciática. Pior para quem não amasse: ele permaneceria no flanco da colina.” O resultado é o que se conhece. 

Ora, o “vai-e-vem” que Rosas reprova em Rosa tem uma função análoga: a de incorporar o leitor nas idas e vindas sem fim de Riobaldo pelos sertões onde ele e Diadorim se põem à caça de Hermógenes. Nisso Guimarães Rosa cumpre a hipótese que um grande crítico brasileiro, Antonio Cândido, elabora para identificar as obras que se tornam primas: aquelas em que “o problema externo é incorporado ao romance como elemento de composição interno”; em que a “forma” incorpora o “conteúdo”. Outra objeção diz respeito ao conhecido apoliticismo de Rosa. Sobre isso não me deterei, ainda que pudesse lembrar que há controvérsias sobre o assunto e que, de todo jeito, o que vale não é o autor, é a obra. Veja-se o caso de Jorge Luis Borges. Era tão anti-esquerdista que, velho e quase completamente cego, aceitou uma condecoração de… Pinochet! Isso, segundo se conta, lhe valeu não receber o prêmio Nobel de literatura, já que o pessoal de Estocolmo não costuma homenagear quem se dispõe a esse tipo de flatérie… Mas quem se lembra disso? Que importância isso tem para quem, como eu, se delicia com um livro extra-ordinário (o hífen foi de propósito) como História Universal da Infâmia? Nenhuma. O indivíduo Jorge Luis Borges está morto e enterrado; já os livros de Borges continuam encantando quem gosta de literatura como a arte que “eleva e consola”, como diria Machado. 

Sim, Grande Sertão: Veredas é um livro exigente. Sim, é um livro “formalista”, ao inventar uma linguagem só sua. E, sim, é um livro, por assim dizer, “metafísico”, pois, pondo-se à margem do “realismo” e da abordagem “social” dos nossos grandes escritores regionalistas (Rachel de Queiroz, José Lins do Rego etc.), trata de problemas universais como o Bem contra o Mal, e incorpora à literatura brasileira o mito fáustico do pacto com o diabo tão próprio à literatura alemã, de Goethe a Thomas Mann. Teria isso a ver com o fato de que Guimarães Rosa, como diplomata, era cônsul brasileiro em Hamburgo quando a sociedade alemã pactuou com um diabo chamado Adolf Hitler? Riobaldo era um “pactuário”, tendo feito um trato com o Demo para vencer Hermógenes. Mas, nessa empreitada, perdeu Diadorim… Como Fausto perdeu sua Margarida. Mesmo se Riobaldo tem dúvidas sobre se o Cão realmente existe, a moral que se pode tirar da história (ou “estória”, como Rosa preferia) é a de que Mefistófeles cobra suas dívidas direitinho.

Mas confesso que sempre partilhei a visão – compartilhada com Clemente –, hegemônica entre nós, de que o Grande Sertão seria um livro “metafísico”, no qual os acontecimentos que narra serviriam apenas de suporte para discussões que seriam de outra ordem. O “regional” como ilustração do “universal”, como se diz. Afinal, o livro se abre com uma palavra desconhecida – “Nonada” – e se fecha com o símbolo gráfico do infinito, antecedido por duas minúsculas observações que parecem remeter ao mistério do sentido da nossa existência – mas que é nosso, e só nosso: “Existe é homem humano. Travessia.”

Ora, exatamente aí, onde Clemente vê matéria a reprovação, eu sempre vi matéria a admiração! Uma das objeções que Clemente faz a Rosa é a de que, “para um médico como ele era, além de diplomata, e portanto homem de ciência”, a “opção” que ele fizera na sua obra literária, privilegiando a “intuição” ao invés da “razão”, era “decepcionante” para um sujeito como ele, Clemente, que se afirma uma “racionalista convicto”. Eu também sou um racionalista convicto – mas apenas no que diz respeito a esse mundo sublunar. Acredito que a terra não é plana e que as vacinas e os antibióticos aumentaram a longevidade dos seres humanos, e sou infinitamente grato a um desconhecido professor de obstetrícia escocês, James Young Simpson, que em 1847 usou o clorofórmio pela primeira vez num parto difícil, com isso inventando a anestesia. E aos que lhe opunham o versículo do Gênesis que dizia: “Tu darás à luz entre dores”, ele opunha a passagem do mesmo Gênesis em que Deus, querendo dar uma companhia a Adão, fê-lo cair no sono para tirar-lhe uma costela, fazendo assim de Deus “o primeiro anestesista”! Genial. 

Mas, como disse, aqui estamos no mundo sublunar. E a ciência, nele, resta sem resposta para questões que não deixam de nos interpelar sobre a questão do Ser – assim mesmo, com maiúscula. Exemplo: quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Essa parece ser a pergunta que o longo monólogo de Riobaldo faz ao leitor, que fica sem resposta. Senão atônito ao se defrontar com o sinal de infinito com que o livro termina. Sim, sou uma daquelas pessoas que tremem quando lêem um Pensamento escrito por Pascal (aquele mesmo que inventou a primeira máquina de calcular, e portanto um homem de ciência) – há quase cinco séculos: “o silêncio desses espaços infinitos me apavora”.

Pois eis que, motivado pelas críticas de Clemente a Rosa como um autor alienado (devo dizer que, salvo engano, Clemente não usa esse termo), fui ler o livro de um alemão radicado no Brasil e professor da USP, Willi Bolle, com o título curioso de grandesertão.br. Bolle, jovem estudante de literatura latino-americana na Alemanha, veio ao Brasil pela primeira vez em 1966, aos 22 anos, segundo ele para conhecer pessoalmente o autor do Grande Sertão, pelo qual era apaixonado. Pois olha só! Resumindo o livro de Bolle excessivamente, o alemão sustenta a tese de que o Grande-Sertão é nada mais, nada menos do que a versão rosiana de Os Sertões, de Euclides da Cunha! Contrariamente à tese de um Rosa “apolítico”, ele seria um autor visceralmente “político”, e seu livro maior falaria do Brasil profundo e das suas iniquidades. E mais: não apenas o Grande Sertão dialogaria com Euclides, mas também com os autores clássicos que, como disse Fernando Henrique Cardoso, “inventaram o Brasil”, a saber: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e outros. É mole? 

Neste momento, já tendo vivido nesta terra de “moer gente” – como diria Darcy Ribeiro, outro autor com quem o “Rosa” de Bolle dialoga – há mais de sete décadas, estou pensando em reler o Grande Sertão pela terceira vez em minha vida. Vou lê-lo – é inevitável – com essa chave de leitura agora proporcionada pelo alemão. Espero que essa perspectiva “sociológica” não esmaeça o encanto que senti ao lê-lo pela primeira vez, num momento em que entrava na idade adulta. Mesmo não sendo dado a rompantes gongóricos, eu topo cair no ridículo e me arrisco, nessa minha releitura, a apostar numa imagem de gosto duvidoso: Grande Sertão: Veredas não é o píncaro de uma cordilheira regionalista de montes (Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida etc.) e montanhas (Jorge Amado, José Lins do Rego etc.), mas uma pedra irruptiva, alta, sólida e solitária na literatura brasileira. Vamos ver.