Chinese sage overlooks exchange men Gouaches Creative Commons

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Durante mais de dois mil anos ininterruptos, a camada não hereditária mais importante na China foi a dos letrados, que forjaram a estrutura das organizações políticas dos Estados chineses. No pouco conhecido ensaio de Max Weber, intitulado “Os letrados chineses”, é descrito com minúcias a burocracia patrimonial do antigo império chinês. Trata-se de  um sistema de domínio híbrido, por entrelaçar tradição, carisma e racionalidade no governo de um colossal espaço geopolítico com uma imensa população de diversas etnias.

Aquela elite de funcionários era formada por pessoas de elevada erudição, principalmente versadas na história e cultura daquele povo. Em todas as categorias de servidores públicos que iriam trabalhar com o imperador, a qualificação para o cargo dependia de exames de seleção. Os mais importantes visavam à conquista de graus, como licenciado e doutorado. A prova para o grau de licenciado incluía uma dissertação que deveria conter uma análise erudita, filológica, literária e histórica de um texto clássico. Para o exame destinado à obtenção do grau de doutorado, o imperador indicava questões relacionadas com temas de eficiência administrativa. Passar nesses exames significava mais do que possuir os conhecimentos requeridos para pertencer ao corpo de funcionários do imperador: indicava ser um detentor de qualidades excepcionais. 

No término do século VII foram estabelecidas regras objetivas para a seleção de pretendentes aos mais altos postos da administração imperial,  regulamentada a posição social dos letrados, criados colégios para a sua educação e constituída uma academia responsável pela publicação de Anais para registrar os precedentes históricos e ressaltar a tradição. Posteriormente, a dinastia Ming, no século XIV, decretou leis que, em essência, se tornaram definitivas e fundou escolas em todas as aldeias. 

O sistema de exames era aberto a todos os interessados e as remunerações ou recompensas associadas aos cargos pretendidos. Isso favorecia uma permanente e ferrenha competição entre os aspirantes da posição, o que dificultava que se unissem com o fim de constituir uma nobreza feudal de funcionários. De fato, ao contrário dos brâmanes, na Índia, os letrados chineses nunca formaram uma casta autônoma de eruditos, mas sim um corpo de funcionários da estrutura híbrida burocrático-patrimonial. 

Os letrados gozavam de privilégios estamentais. Pela prestigiosa posição social que possuíam e ao peculiar estilo de vida que cultivavam, eles tinham regalias, tais como: serem livres de executar serviços humildes ou braçais; não trabalhar sem pagamento; serem livres de punição corporal; Acima de tudo, a força dos letrados provinha do preceito dos confucianos, segundo o qual o imperador só podia governar usando os letrados aprovados nos exames. 

Com frequência regular, a performance e o comportamento do servidor letrado na burocracia patrimonial chinesa eram avaliados pelos seu chefe ou pelo colegiado de censores, que fazia o apontamento de seus méritos e de suas falhas. O resultado conclusivo dos registros sobre seu comportamento não era determinado apenas pela qualidade do seu desempenho na realização das atividades que lhe foram atribuídas nem, tampouco, por considerar, exclusivamente, alguns fatores funcionais objetivos. Na realidade, também era importante avaliar o caráter do letrado, visto que predicados individuais, como sinceridade e lealdade, eram virtudes enaltecidas. Em caso de reiteradas apreciações desfavoráveis, a penalidade resultante tinha caráter vitalício. 

Pela sua relevância para o império, as conclusões dos relatórios de avaliações dos letrados chineses, que podiam conter elogios, promoções, corte da remuneração ou o banimento deles, eram publicadas no Gazeta Imperial. Diante do povo, a matéria difundida também funcionava como uma prestação de contas das atividades administrativas oficiais. Essa publicização dos fatos marcantes do império também representava uma forma de expor aos súditos e ao Céu o senso de responsabilidade advindo da qualificação carismática de um imperador honrado e nobre. 

Há de salientar-se que, geralmente, o mandato do funcionário era curto, permitindo uma influência racional sobre a economia chinesa através da administração do Império, porém, exercida de forma descontínua. Os letrados que deixavam a burocracia patrimonial juntavam-se àqueles que haviam sido aprovados, mas não designados como funcionário, para exercer seu ofício em alguma associação importante, pois era compulsório essas entidades terem um letrado aprovado em exame para atuar na função de secretário ou em outra semelhante. 

O passado remoto da China, especificamente o papel histórico dos letrados chineses, propicia indícios que podem ajudar a compreender a sua prosperidade contemporânea em meio ao aparente paradoxo da coexistência de um regime autoritário comunista de partido único com a pujança de uma competitiva economia de mercado.

 

Sérgio Alves

Sérgio Alves é professor titular (aposentado) da Universidade Federal de Pernambuco, onde foi diretor do Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Antes era docente da Coordenação de Pós-graduação em Administração, na UFRJ, Rio de Janeiro. Participou do Humphrey Fellowship Programm, na Pennsylvania State University (USA), e fez estágio de pós-doutorado no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século 20, na Universidade de Coimbra (Portugal). Recebeu o prêmio Delmiro Siqueira, do Conselho Federal de Administração, para a melhor publicação do ano (1997): “Revigorando a Cultura da Empresa”. Entre seus livros, estão “As Organizações e a sua Administração no Brasil”, “Racionalidade, Carisma e Tradição nas Organizações Contemporâneas” e “O Estado do Líder” (no prelo).