O BRICS, originalmente formado pelas quatro grandes economias emergentes – Brasil, Rússia, Índia e China (incorporando depois a África do Sul) – constituiu-se como um bloco de nações heterogêneas que convergem na disputa geopolítica contra a hegemonia unipolar dos Estados Unidos consolidada depois do desmonte da União Soviética. Iniciativa legítima e até positiva, não fossem as imprecisões e fantasias que são propagadas pelo governo brasileiro nos discursos do presidente Lula da Silva.
Como BRICS é um nome inadequado, inventaram de denominar o bloco de nações – claramente liderado pela China – de Sul Global, virando de cabeça para baixo o sistema de coordenadas da Rosa dos Ventos criado há mais de quinhentos anos (na verdade, o nome vem dos gregos). Dos nove países que já compõem o bloco, apenas dois estão no hemisfério sul – Brasil e África do Sul (a Etiópia está na África, mas se situa no hemisfério Norte) – e os dois grandes emergentes originais – China e Índia – estão na Ásia, e a Rússia é parte da Eurásia. Numa tentativa de reeditar o velho conflito Norte-Sul do século passado, o BRICS desmonta a geografia quando, rigorosamente, seria mais adequado falar de uma disputa geopolítica Leste-Oeste. Algumas vezes, pensam também recuperar o conceito de não-alinhados, que exerceu um papel importante na disputa das duas potências imperiais – Estados Unidos e União Soviética – durante a guerra fria. E, no fundo, se trata de um alinhamento com um dos blocos da bipolaridade que está se formando.
Algumas das intenções do tal “Sul Global” citadas por Lula são inadequadas e imprecisas. A começar pela anunciada pretensão de construção de um sistema de poder multipolar. “Na presidência brasileira do BRICS, queremos reafirmar a vocação do bloco na luta por um mundo multipolar e por relações menos assimétricas entre os países”. Esta é uma visão totalmente enviesada. O que está sendo construído com a expansão do BRICS é uma bipolaridade entre o bloco comandado pelos Estados Unidos e Europa, de um lado, e o agrupamento liderado pela China em aliança com a Rússia (sem ignorar que a Índia é também uma grande aliada de Washington).
Por outro lado, Lula ignora completamente a realidade, ou esconde os dados, quando confere ao bloco do BRICS ampliado a preocupação e as iniciativas para conter as emissões de gases de efeito estufa que estão provocando as mudanças climáticas. No seu discurso na reunião do BRICS desta semana em Kazan (por videoconferência), Lula disse que o “BRICS é ator incontornável no enfrentamento da mudança do clima. Não há dúvida de que a maior responsabilidade recai sobre os países ricos, cujo histórico de emissões culminou na crise climática que nos aflige hoje.” Ao contrário do que ele afirma, a China é o país que mais emite gases de efeito estufa do mundo, responsável por quase 26% do total das emissões globais (dado de 2022), mais do dobro das emissões dos Estados Unidos, segundo maior emissor do planeta. A Índia é o terceiro, e a Rússia o quarto, com o Brasil assumindo a sexta posição no ranking de países que emitem gases de efeito estufa (atrás apenas da Indonésia). Estes quatro membros originários do BRICS são responsáveis por nada menos que 39,4% do total de emissões de gases de efeito estufa, muito longe de se constituírem em salvadores do planeta.
Para o presidente Lula, o BRICS permitirá também a ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas com a incorporação de países do tal Sul Global, o que ajudaria a promover a paz mundial. Será? Ele parece esquecer que dois membros do bloco – China e Rússia – fazem parte do Conselho e, além do mais, têm poder de veto das decisões. Na verdade, não adianta nada ampliar o número de participantes do Conselho se não for revisto o conceito de veto concedido às cinco maiores nações detentoras de bomba atômica. E nenhum desses cinco países vai aceitar que as deliberações sejam aprovadas por maioria simples, principalmente com um Conselho ampliado, nem ceder o direito de veto a outras nações que podem ser aliadas no presente, mas adversárias no futuro. China e Rússia podem confiar que o Brasil vai ter sempre um governo simpático aos seus interesses, numa democracia que corre o risco de ter alternância de poder?
Além desses equívocos, é uma grande fantasia de Lula a criação de uma moeda dos BRICS ou, de forma mais modesta, de um meio de pagamento em moedas locais para o comércio entre os países do bloco, de modo a se liberar do padrão dólar. No seu discurso, o presidente Lula adiantou que “agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países”. Pode ser, mas qual padrão monetário será utilizado para o registro contábil destas transações? Ao contrário do que Lula costuma propagar, nenhum país é obrigado a fazer negócios na moeda americana que, ao longo da história, foi se formando uma relação de confiança no padrão dólar. Atualmente, o Brasil já tem reservas em yuan, até mais do que no Euro, embora apenas 5,37% do total, reflete a escala do comércio com a China e a confiança que os empresários começam a ter na moeda chinesa. Mas isso não se cria por decreto. Duvidoso que os exportadores brasileiros aceitem pagamento em rublo? E não por restrições ideológicas. Se trata de confiança em um contrato, principalmente de médio e longo prazos, num padrão monetário que não esteja sujeito a instabilidade ou decisão política do Estado emissor da moeda que provoque desequilíbrio no valor real dos produtos negociados.
Lula também mistura conceitos quando fala do banco do BRICS comparando com o Banco Mundial e com o FMI-Fundo Monetário Internacional. O FMI não é um banco de fomento do desenvolvimento, é um fundo criado para financiar os países numa emergência de crise cambial, combinando juros baixos com exigências de medidas governamentais para sanar os problemas fiscais e financeiros. No que está coberto de razão quando cobra os ajustes que superem no futuro a crise cambial. O Banco Mundial tem características semelhantes ao NDB, é um banco de desenvolvimento que tem financiado, com juros muito favoráveis, projetos de desenvolvimento de países de renda baixa e média com foco no combate à pobreza e à fome e no enfrentamento dos problemas ambientais. O NDB vai complementar e ampliar o financiamento do Banco Mundial, mobilizando recursos dos países do BRICS, principalmente da China, mas é um grande equívoco propagar que agora as nações pobres vão receber, finalmente, uma ajuda financeira para o desenvolvimento.
Iniciativa importante, o bloco do BRICS (o tal de Sul Global) corre o risco de vender muitas fantasias e algumas ilusões quando, em última instância, serve para fortalecer a bipolaridade no jogo global de poder. O Brasil deve participar deste agrupamento de nações, considerando a sua importância econômica e comercial, mas deve ter o cuidado para manter sua independência e evitar um atrelamento e submissão aos interesses dos líderes do bloco, principalmente à China.
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