O “dramático” e “barroco” Pedro Almodóvar (1949–), em seu recente e premiado filme “O quarto ao lado” (em cartaz nos cinemas), desdramatiza a morte. O que, por óbvio, costuma ser difícil, uma vez que a morte desde sempre assombra o imaginário humano. Lembro que, num dos seus livros, cheios de poesia e de fervor, o historiador francês Jules Michelet (1798–1874) exclama: “A morte é uma flor!”, e essa imagem é como um antídoto a tudo o que nos inocularam de terrível, fantasmagórico e doloroso com relação à morte. Em seu contexto de pesquisador, Michelet dava uma sintética resposta a uma visão macabra criada pela Idade Média.
Almodóvar, ao contrário de Michelet, não insufla positividade na morte, muito menos negatividade. Para uma boa morte, ao contrário do sentimento religioso de muitos, é preciso, num viés biológico e, de certa forma, materialista, buscá-la nos casos em que os sofrimentos são extremos. Curiosamente, em nosso tempo, a medicalização excessiva para prolongar a vida encontra-se com a tecnologia que abre suavemente as portas da morte. Todavia, uma certa moral religiosa, impregnada na cultura, a reboque dos benefícios da eutanásia, insiste no valor moral e utilitário do sofrimento e numa excessiva sacralidade da própria vida. Assim, nada parece contar a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Esses direitos, também humanos, são vistos como crimes por códigos penais arcaicos que sobre eles impõem a mão pesada e onipresente do Estado.
Para fugir desse polêmico e, a seu modo, totalitário zelo estatal (à semelhança do que ocorre com o aborto), há, em muitos países (inclusive no Brasil) que se fugir à lei. É o que faz a heroína de “O quarto ao lado”, vivida por Tilda Swinton, nesse ponto auxiliada por uma amiga (encarnada por Julianne Moore), ambas jornalistas e cúmplices de aventuras e histórias de vida. O face a face com a finitude, à exceção talvez de uma única cena, ocorre de uma forma progressiva e tranquila, quando há espaço, inclusive, para os últimos prazeres (em especial os da amizade) e os últimos e inevitáveis balanços existenciais. Ressalte-se o magistral desempenho de ambas as atrizes.
Pouco a pouco, encena o filme, as radicais solidões da dor e da morte devem ser vencidas. Como se sabe, é comum o medo demasiado humano de se estar só no momento da morte. Sobre isso, Jorge Luis Borges (1899–1986), em palavras tão belas quanto verdadeiras, assim se expressou: “A velhice poderia ser a suprema solidão, não fosse a morte uma solidão muito maior”. Daí a presença e a metáfora do “quarto ao lado”, que remete ao próprio nome do filme e, semioticamente, a uma intimidade que tem seus limites. A veterana repórter de guerra, testemunha de muitas mortes e desesperos, vive agora sua guerra pessoal, íntima, contra um câncer fulminante. É preciso, por assim dizer, organizar a morte, e, para isso, como um último bálsamo, precisa da cumplicidade e da empatia da amizade.
O súbito advento da finitude requer análise, distanciamento e, claro, novos arranjos psíquicos e morais. A despeito de gregário por natureza, o ser humano não pode evitar poeticamente a solidão como uma obra de arte. Eis por que cai muito bem ao filme a referência literal e metafórica a Edward Hopper (1882–1967), o grande pintor do silêncio e da solidão; criador (e nada de original vai nesta frase) de uma luz misteriosa e fria que matiza todas as suas pinturas.
Assim como cita expressamente Hopper, nele se inspirando em alguns momentos do seu filme (inclusive numa das cenas finais), Almodóvar igualmente incorpora uma música condizente ao seu roteiro, cuja autoria é de um velho parceiro seu: o compositor espanhol Alberto Iglesias (1955–). Sinfônica, suave e nada dramática, a leve gravidade do fundo musical dominante sugere beleza e aceitação. O fim pode ser assumidamente belo.
No livro “Conversas com Almodóvar” (Rio: Zahar, 2008), de Frédéric Strauss, o manchego cineasta revela que, ao contrário de muitos de seus pares, que descrevem uma imagem como ponto de partida para a criação de um filme, ele tem nas palavras o começo de seu processo criativo: “No início há sempre palavras, falas, uma história que me leva às imagens do filme”. É bem o caso. “O quarto ao lado”, não obstante ter sido escrito e dirigido pelo próprio Almodóvar, inspirou-se no romance “O que você está enfrentando”, da americana Sigrid Nunez (1951–), aliás, uma obra que conta, desde 2021, com uma edição brasileira.
Enfim, a morte pode não ser uma flor, mas nem por isso é um jardim sombrio. É o que sugere Almodóvar com a luz de Hopper e sua própria luz.
Linda resenha. Esse vou ver. Mas de Almodovar eu já gostava antes. Nestas paragens, preciso lembrar de escrever meu testamento vital… Tenho um assinado, em inglês, de Nova York, mas se é que tem alguma valor, é só lá, em Nova York.
Obrigado, Helga.
Pretendo também fazer um testamento vital.
É importante não dar trabalho aos próximos e aos pósteros mais próximos… Planejar o desembarque.
Abraço fraterno
PG
Obrigado, Helga.
É importante nos planejarmos para um desembarque suave, se for o caso.
Abraço fraterno
PG
Pois eu não tenho tais planos, amigos. Como o poeta Fernando Pessoa, “não tenho preferências para quando já não puder ter preferências”. Podem me cremar e diluir minhas cinzas no mar de Praia Formosa, onde já estão as de minha irmã mais velha e do meu irmão mais novo. Mas, se for muito caro, posso também ter abrigo no cemitério de Cabedelo. De qualquer modo, estarei “voltando à pátria da homogeneidade”, no dizer de outro poeta, este de minha terra, Augusto dos Anjos.
Quem leu teus livros e crônicas, Clemente, sabe que você gostaria que te garantissem em vida que quando você morrer jogarão tuas cinzas no mar de Praia Formosa. Sobre “depois da morte” não tenho preferências claras. O “depois da morte”, a rigor, não deveria me importar, já que não acredito em vida depois da morte. Mas até onde entendi o que é “testamento vital”, ele é para antes da morte, é, digamos, para os últimos anos, é para o caso de estar viva sem capacidade de me administrar por mim mesmo. É para que, quando eu estiver em semi-coma irreversível , ninguém me enfie um tubo de alimentação nasoenteral no nariz e amarre minhas mãos para me impedir de arrancá-lo. Não estou inventando, é o que vejo atualmente sendo feito no caso de duas amigas que conheci bem. E aí só posso admirar a decisão do poeta e membro da ABL Antonio Cícero. Testamento vital é para quem não tem condições de ir para a Suiça para ter morte assistida.
Entendido. Formo no mesmo time seu, amiga.