
Carmen Miranda
Carlos Gardel costumava brincar dizendo que havia nascido em Buenos Aires aos dois anos de idade, quando, na verdade, abrira os olhos na França, bem longe da capital argentina. A nossa Carmen Miranda (1909–1955), que nos deixou há redondos 70 anos, “nasceu” no Brasil sem ainda ter completado um ano de Portugal! Foi carioquíssima, com tudo que esse superlativo pode evocar de gracioso e bem-humorado. Diga-se de passagem que a cidade do Rio tem um museu só para ela, e Carmen bem que merece.
Leitor e fã de Ruy Castro, só há pouco, com evidente atraso, li sua estupenda biografia de Carmen Miranda (“Carmen, uma biografia”, publicada em 2005). Castro, a quem considero um verdadeiro historiador social, ergue a sua biografada num painel que abrange um significativo quarto de século. Munido de seu habitual humor e levíssimo estilo, além de farta documentação, o escritor cria, por assim dizer, um outro museu para Miranda: histórico, social e rico em saborosos detalhes. Vendo Carmen pelas lentes de Castro, ocorre-me parodiar Drummond ao falar de Guimarães Rosa: “Carmen Miranda era uma louca que pensava que era Carmen Miranda”. De fato, ficamos diante de um destino singular e cenográfico, de uma vibrante força vital e criativa.
A vida foi generosa com a artista. Se lhe faltara altura, sobrava-lhe talento, beleza, inteligência corporal e carisma. Possuía, como diz Castro, “um sorriso panorâmico”. Para compensar a pequena estatura, calçava plataformas de 13 cm, sem falar nos tropicais e excêntricos turbantes. Muito nova ainda, já em 1930, conheceu a fama, conquistou multidões. A carreira precoce tirou-a da pobreza. O rádio, a grande mídia da época, transmitindo suas interpretações, inundava o País com sua voz de “soprano afinadíssima” e sempre surpreendendo “os ouvintes com seus achados”. Os Carnavais com ela nunca mais foram os mesmos: marchinhas e sambas se eternizaram. Teve a sorte de ter parceiros que foram consumados mestres da música popular brasileira: um Assis Valente, um Luiz Peixoto, um Dorival Caymmi, um Ary Barroso, um Joubert de Carvalho, um Lamartine Babo, um André Filho, tantos e tantos outros.
Carmen, após ter maravilhado o Brasil, a convite de um magnata de shows que a conheceu no Rio, partiu para magnetizar as plateias de Nova York. Ainda que o repertório fosse numa língua incompreensível, os americanos, como antes os argentinos, ficaram fascinados. Tornou-se uma das artistas mais bem pagas dos Estados Unidos. Os empresários de shows vibravam com sua descoberta, pois ela podia ser (e foi) sinônimo de abundantes dólares em suas contas. Na América do Norte, também intensificaria sua carreira de atriz, já iniciada no Brasil na década de 1930. Lá participaria de catorze filmes, alguns dos quais como estrela principal. Em Washington, na Casa Branca, cantou, com o seu inseparável Bando da Lua, na comemoração dos sete anos do mandato do presidente Roosevelt. Sua casa, em Beverly Hills, “era um segundo consulado brasileiro”.
Agora lhes trago uma curiosidade que não está na enciclopédica biografia de nosso Ruy Castro. Carmen Miranda tinha um fã que mal conseguimos imaginar: ninguém mais, ninguém menos que o mítico filósofo anglo-austríaco Ludwig Wittgenstein (1889–1951). É o que atesta o britânico Ray Monk (1957–), em “Wittgenstein, o dever do gênio”, biografia publicada no Brasil em 1995. Monk não o diz, mas se pode deduzir que o filósofo a conhecia dos filmes americanos em que Miranda atuara.
O final da história da artista, pra não me alongar neste artigo travestido de resenha, ou vice-versa, é conhecido. Com a oclusão das coronárias, “um infarto maciço”, em agosto de 1955, matou Carmen Miranda. O então Repórter Esso, uma espécie de avô do Jornal Nacional, entraria no ar dizendo, numa emissão extraordinária, pela voz do jornalista Heron Domingues: “Atenção, atenção. Beverly Hills, Califórnia. Faleceu Carmen Miranda”. Como desejara, Carmen foi enterrada no Brasil. Dispensável dizer que sob intensa comoção popular.
Dela se poderá comentar o que se fala de Carlos Gardel na Argentina: “Não morreu, cada dia canta melhor”.
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