Heidegger

Heidegger

Em seu conhecido livro sobre Heidegger, o crítico George Steiner nos fala o que todos os heideggerianos bem sabem: “O filósofo foi um caminhante infatigável em lugares sombrios e mal iluminados”. Vários de seus títulos, diz Steiner, costumam evocar uma “peregrinação”, a saber: “Os caminhos que levam a parte alguma”; “Marcos de estrada”; “A caminho da fala”; “O sendeiro através do campo”. Não por acaso, o conceito de “clareira” (“Lichtung”) é um dos pilares de sua filosofia. Ao estudar, no ensaio “Aletheia”, o fragmento 16 de Heráclito, Heidegger nos lembra que a clareira é um desvelar-se e pontua: “O iluminar dá suporte ao aparecer, libera o que aparece em seu aparecer. O livre é o âmbito da revelação. Este é regido pelo descobrir”.

Naturalmente, numa outra chave, “caminhos” e “clareiras” também estão presentes no romance “Em busca do tempo perdido”. Desde a infância, o herói (este o termo usualmente empregado pelos especialistas) se depara com dois caminhos supostamente opostos, o de Swann e o de Guermantes.  A simplicidade dos títulos da “Busca” esconde uma simbologia e pouco mostra da densidade que Proust confere à longa meditação sobre uma vida que, em essência, nos fala da Vida, um livro no qual, como o desejou e registrou no próprio romance, “cada leitor é leitor de si mesmo”.  Dois desses títulos (No caminho de Swann” e “O caminho de Guermantes”), na mais tradicional tradução brasileira, estampam a palavra “caminhos”, termo que ecoa os originais, tão “familiares” quanto orais: “Do lado da casa de Swann” e “O lado de Guermantes” e remete, de certo modo, à metaforização tão amada por Heidegger.

Aqui é necessário desfazer, ao menos em parte, uma imagem de Proust como recluso (sobre ele carimbada nos últimos anos de sua vida), que não combina nem com seu hábito de sair (em especial à noite, por causa do pó diurno, fatal para sua asma) e frequentar a sociedade nem com os inúmeros passeios e excursões de Marcel, seu herói e duplo. No romance, o aspecto biográfico e martirizante da asma é praticamente inexistente, ou seja, as “sufocações” são eventualmente referidas, mas nada interferem no gosto por passeios e caminhadas.

Em seu ensaio crítico “O espaço proustiano”, Georges Poulet defende que […] desde o primeiro momento da narrativa, a obra proustiana se afirma como uma busca não somente do tempo, mas também do espaço perdido”. Em “Jean Santeuil”, romance inacabado, Proust torna ainda mais complexa sua noção de espacialidade, pois dirá que “Os lugares são pessoas”. Mas, como veremos adiante, as pessoas, ao revés, também são uma espécie de lugar: a clareira.

No penúltimo volume, “A fugitiva”, o herói, ao passear no emaranhado de ruas e becos de Veneza, parece deliciar-se com uma cartografia de perdição e deslumbramento. Ele se sente um “personagem das ‘Mil e uma noites’” e não poucas vezes se depara com mágicas “clareiras”, ou seja, inesperadas praças cercadas por conjuntos de palácios encantadores. Como para Heidegger, essas “clareiras” desocultam uma revelação e mostram como o espaço desloca o tempo ou lhe confere uma dimensão especial e transfigurada. O que faz o herói duvidar do real e refletir que “não existe grande diferença entre a lembrança de um sonho e a lembrança de uma realidade”.

Não será preciso mergulharmos profundamente no imaginário humano para avaliarmos o quanto a imagem da clareira é viva e persistente. E quem duvida que uma clareira seja um “locus” especial: de repouso, de atenção, de sondagem, de desembaraço, de saída à luz? Elas, a seu modo, são estrelas, são luz, como, de resto, aponta sua etimologia. Não por acaso o trecho de Heidegger citado no início nos diz que “o âmbito da revelação” é “regido pelo descobrir”. Não precisamos dizer que é justamente a descoberta que move Marcel Proust.

Agora, acompanhemos o salto metafórico de Proust, quando o herói, já amadurecido, praticamente idoso, em “O tempo redescoberto”, analisando os múltiplos caminhos da sua vida pregressa, depara-se com a neta de Swann, filha de Gilberte, sua primeira namorada, e nos declara: “Como a maior parte das pessoas, aliás, não representaria ela, na vida, o mesmo que, nas florestas, as clareiras em forma de estrela para onde convergem, de pontos diversos, tantas veredas?” (Tradução de Lúcia Miguel Pereira). Aos leitores mais exigentes, transcrevo, por oportuno, o texto original: “Comme la plupart des êtres, d’ailleurs, n’était-elle pas comme sont dans les forêts les ‘étoiles’ [aspas de Proust] des carrefours où viennent converger des routes venues, pour notre vie aussi, des points les plus différents”.

O que chamei acima de “salto metafórico” ocorre porque não estamos mais no campo especulativo e filosófico em que nos deixa a clareira heideggeriana, muito menos numa topografia simbólica que se perde na “noite dos tempos”. Não. Proust, como que deixando de lado sua habitual visão da pessoa humana enquanto mônada solipsista e enigmática (sobre isso citei inúmeras passagens em meu livro “A tartaruga e a borboleta: um caminho para Proust”), deixa-se levar, nessa passagem, por uma verdadeira epifania e leva a clareira para um terreno mais encarnado, mais poético e existencial.

Os seres humanos são eles mesmos clareiras, eis a metáfora a reter. Não são apenas pontos de/em trânsito, mas pontos que dão sentido a esse trânsito, pontos que são como nós de rede e onde diferentes e divergentes fios encontram-se em mútuo apoio. As clareiras humanas conferem sentido à obscuridade da floresta da existência e também mostram que o “perdido” é o “reencontrado”.  É o que podemos conferir no trecho que fecha a cena evocada: “Achei-a bonita […] Risonha, formada pelos anos que eu perdera, assemelhava-se à minha mocidade”. Dessa forma, o herói-narrador demonstra que o tempo da clareira é o da densidade multidirecional e, ao escoar-se, firma-se a si mesmo.