Tive a oportunidade de participar, em 24/6, como entrevistador, da live “Conversas na Crise – Depois do Futuro”, apresentada pelo jornalista Paulo Markun e organizada pelo Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp em parceria com o UOL. A entrevistada foi a ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal.
Foi uma conversa esclarecedora.
O STF está no centro da crise política nacional. Em boa parte, porque a crise também é dos agentes, dos políticos e dos partidos. Não diz respeito somente ao conflito entre os poderes ou às dificuldades e carências institucionais. Vai mais fundo e põe em xeque toda a chamada classe política, as oposições, os democratas.
Isso ocorre também porque nossa época está atravessada pela “judicialização” da política, expressão controversa sobre a qual não há consensos categóricos. Hoje em dia, a maior parte das decisões políticas passa por tribunais e exige interpretações constitucionais. A própria agenda pública, congestionada de temas e problemas, muitos dos quais envolvem abertamente a dimensão ética e moral da vida, faz com que os tribunais sejam acionados o tempo todo. O STF é um desaguadouro de inúmeras expectativas e de diversos questionamentos.
Como observou a ministra Carmen Lúcia, o STF “não entra em todos os assuntos”, mas com frequência é forçado a se envolver com discussões que, a rigor, deveriam permanecer no âmbito do Legislativo. Se há “judicialização da política”, disse ela, é porque os agentes políticos ou os cidadãos movimentaram-se e levaram a Corte a se posicionar. O STF não age se não for “provocado”, reza a linguagem protocolar.
Independentemente de haver ou não um projeto para “judicializar” a política, o fato é que isso vem acontecendo, o que por certo não é bom para a democracia. Trata-se de algo que se deve, em boa medida, à incapacidade decisória das instâncias propriamente políticas, o Congresso em particular. Falhas e dúvidas se somam à dificuldade de enfrentar temas complexos, que atormentam a opinião pública e muitas vezes não são nem sequer assimilados pelos agentes políticos. Responsabilidades são assim transferidas, as demandas da sociedade não são processadas na instância propriamente política, terminando por serem resolvidas “tecnicamente”. O Poder Judiciário acaba assim por resolver (ou normatizar) inúmeras questões, em geral polêmicas, sobre as quais não há entendimento taxativo. Ocorre, com isso, certa “apropriação” das instâncias propriamente políticas da sociedade (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas Estaduais, órgãos do Poder Executivo, governos estaduais e municipais).
Judicialização e ativismo judicial
Os termos muitas vezes são confundidos um com o outro. Mas têm suas distinções.
Na judicialização, age-se dentro dos limites constitucionais e de sua interpretação. Não se trata de um processo em que haja uma vontade explícita de reinterpretar a lei ou ir além dela. A “provocação” feita por algum solicitante exige que os tribunais se manifestem, sempre na expectativa de que forneçam a correta interpretação dos marcos jurídicos em vigor. Nem sempre há decisões colegiadas unânimes, até porque a leitura das leis está sempre submetida a escrutínios filosóficos e jurisprudenciais em tese inesgotáveis.
Já o ativismo judicial, em boa medida, diz respeito a atos nos quais o Poder Judiciário, por alguns de seus órgãos ou integrantes (juízes, procuradores, promotores), expressa iniciativa e vontade política. Juristas falam, nesse caso, de “atitude proativa”, que se põe além da Constituição e a reinterpreta com maior dose de liberdade. Há, assim, um desejo mais explícito ou menos de participar do jogo político, ocupar espaços na sociedade civil e impulsionar avanços no campo dos direitos. Muitas vezes o Poder Judiciário ativista colide com outros poderes do Estado, podendo ou não produzir conflitos. Mas sua atuação também pode ser vista como uma importante fonte de inovação no campo dos direitos.
É bastante conhecida a posição a esse respeito do ministro Luís Roberto Barroso, expressa, por exemplo, no artigo “Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática”. Para ele, a judicialização está dada no Brasil e envolveria uma “transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade”. Suas origens estariam na redemocratização e na Constituição de 1988, que ampliaram as garantias da magistratura e fizeram com que o Judiciário deixasse de ser um “departamento técnico-especializado” e se transformasse em um “verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes”. Ao mesmo tempo, ocorreu a “expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria Pública em diferentes partes do Brasil”. Em suma: a redemocratização contribuiu decisivamente para fortalecer e expandir o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira.
Nas palavras de Barroso, “a judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”.
O ativismo judicial expressa “uma postura de intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário”. Seu objetivo seria “contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso”.
Tanto a judicialização quanto o ativismo contém riscos, entre os quais os mais relevantes envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias.
O ativismo judicial tem impacto generalizado: na vida cotidiana, na política, nas políticas públicas, na luta por direitos, na formatação das ações governamentais e no Estado. Como, no Brasil, as políticas públicas estão constitucionalizadas (são deveres de Estado), o peso dos tribunais e dos juízes está evidentemente amplificado. Como não dispõem da devida legitimidade política (são “contramajoritários”), e nem são concebidos como produtores autônomos de norma jurídica, os tribunais deveriam atuar tão somente nos limites da lei, não estando autorizados a pautar a ação dos demais poderes estatais. Isso, porém, nem sempre ocorre, o que converte o ativismo judicial numa modalidade jurídica de risco, a partir da qual as esferas de competência dos poderes podem ser desrespeitadas.
A menção usual que se faz à existência de um “governo de juízes” reflete bem esse quadro, exprimindo a celeuma que cerca a vontade dos tribunais de deter a última palavra em questões de natureza substantiva, substituindo as escolhas de atribuição dos órgãos representativos. A alegação é de que o Poder Judiciário deveria estar sempre pronto para agir diante da eventualidade de uma não-ação do Legislativo e do Executivo.
Dado precisamente o risco de que se derive para um “governo de juízes”, escreve Barroso, ”o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso”. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, “em relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos”. Juízes e tribunais não podem “presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição”.
Em outros termos, “o ativismo judicial tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes”.
A visibilidade do STF
Nesse contexto, o Supremo brasileiro ganhou transparência. Tornou-se mais conhecido pela sociedade e os cidadãos passaram a se interessar pelo que faz a Corte, quem a integra e o que cada um dos ministros pensa. Deu-se um passo importante para o aumente do respeito ao STF como guardião da Constituição.
O STF, em particular, tornou-se um ator da vida política nacional. Suas sessões e seus julgamentos são transmitidos diretamente pela TV Justiça e acompanhados por milhares de cidadãos. É um fato que pode produzir uma inconveniente “espetacularização” e a que os juízes se preocupem em demasia com seu desempenho pessoal. A visibilidade pública, porém, também funciona como um regulador e um mecanismo de controle democrático.
Não é por outro motivo que a Corte se transformou em alvo dos interesses que contraria. No Brasil atual, é uma das obsessões do “gabinete do ódio” e do fanatismo ideológico.
Estão na pauta do STF questões complexas, estratégicas, delicadas: fake news, crimes contra a administração pública e a democracia, irresponsabilidade governamental, menosprezo por direitos fundamentais. Instigados pela gravidade dos temas e por sua repercussão na vida do País, os ministros têm atuado com grande convergência, formando maiorias unitárias que, em outros momentos, não se manifestaram. Escrevem outro capítulo de suas próprias biografias.
A perspectiva que se mostra hoje prevalecente no STF pode ser sintetizada numa ideia formulada pelo ministro Alexandre de Moraes: “Não há democracia sem Poder Judiciário forte. E não há Poder Judiciário forte sem um juiz independente, altivo e seguro”.
Mas não é fácil manter o padrão. São onze ministros, cada um com boa dose de autonomia e poder decisório, que os possibilita agir “monocraticamente”. Não pensam todos do mesmo modo e mantêm relacionamentos diferenciados com interesses e setores sociais. Tem trajetórias políticas e posturas ideológicas distintas. Não são anjos, são seres com ideias e opiniões, cuja subjetividade pesa e interferem com os juízos de valor que formulam. Não estão imunes ao tempo, às circunstâncias da época e às injunções dos cargos que ocupam.
Mencionando mais uma vez Luís Roberto Barroso: “juízes não podem ser populistas e, em certos casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia”.
O plenário se dividiu, por exemplo, por 7 votos contra 4, quando se manifestou sobre a possibilidade de que estados e municípios reduzam salários de servidores para ajustá-los às respectivas finanças. A decisão foi polêmica e revelou uma zona de atrito sempre aberta entre o Judiciário e a gestão governamental.
Ativismo e Lava-Jato
Além disso, o STF integra o sistema de Justiça, que é com ele confundido, por vezes produzindo dissonâncias e chamuscando a imagem de juízes, procuradores, promotores e advogados. O sistema, como um todo, nem sempre se pauta pela isenção e pela efetividade: abusa de práticas protelatórias e escaramuças, está congestionado de processos, é demasiadamente lento. São problemas que deixam explícito o caráter seletivo da Justiça.
O protagonismo judicial também tem contribuído para “desorganizar” a atividade política, por meio de decisões que terminam muitas vezes por criminalizar práticas governamentais, legislativas, partidárias ou eleitorais. Parte importante da história recente do combate à corrupção no Brasil se fez em meio a uma acerba polêmica sobre os efeitos políticos (desejados ou colaterais) da ação judicial.
O “lavajatismo” que ainda pulsa na sociedade apoiou-se na tese de que a sociedade brasileira seria “imatura” e não conseguiria se defender adequadamente dos abusos políticos e administrativos, vindos tanto do setor público como do privado, da classe política, dos governantes incompetentes e dos empresários inescrupulosos. O Ministério Público e particularmente a força-tarefa de caça aos corruptos funcionariam como anteparo protetor e agente de compensação.
O ativismo da Lava-Jato expressou uma escolha política, um ato de vontade, no melhor estilo de ativismo judicial. Os juízes e procuradores que integraram a operação passaram a agir como “grupo político”. No primeiro round, desidrataram o PT e os partidos a ele aliados. Mas, no segundo round, que parecia ser o da glória, com a ida de Sérgio Moro para o governo, a operação bateu na cerca. Especialmente após a saída de Moro, tornou-se incômoda para o governo Bolsonaro. Se, nas eleições de 2018, o presidente se beneficiou abertamente da Lava-Jato, agora, com seu governo em crise e a família cercada pela Justiça, a operação virou um problema. O jeito foi escanteá-la, como ficou evidenciado com o conflito entre a Procuradoria Geral e os procuradores. O mote ficou claro na ideia de que “o modelo de força-tarefa está esgotado, é desagregador e incompatível com a instituição”.
O atual protagonismo do STF
Seja como for, em seu ciclo mais recente, a Corte tem atuado com firmeza na defesa da Constituição e na redução dos danos políticos do governo Bolsonaro. Será difícil encontrarmos na história brasileira um governo tão raso e desorientado quanto o atual, que, em dezoito meses de mandato, só conseguiu produzir ruído e atrito na vida nacional. A sociedade está hoje à deriva, a perplexidade contagia os cidadãos. O governo não tem competência nem disposição para alterar sua postura. O Poder Judiciário está, por isso, convocado a permanecer em vigília cívica.
Carmen Lúcia foi direta ao ponto: “Acho muito difícil superar a pandemia com esse descompasso, com esse desgoverno”, referindo-se tanto ao governo federal quanto à dissonância entre as esferas da federação. “A política se faz com todo mundo, com todos os cidadãos e para todos os cidadãos. Não segundo a visão de um ou outro governante. Porque isso vai resultar em mortes, e haverá responsabilidade por isso”.
A ministra tem esperança, é uma mulher de convicções, não se entrega ao pessimismo. “Não se pode permitir abuso em nome da liberdade de expressão”, que é um princípio intangível, indiscutível. Em um Estado democrático de direito, como o nosso, “não existe Poder acima do outro” — nenhum Poder, e especialmente as Forças Armadas, que não são um Poder e precisam ser vistas em suas atribuições constitucionais.
A conversa com Carmen Lúcia deixou em aberto a questão de saber se, no atual marco institucional, poderemos encontrar uma saída virtuosa para a crise atual e organizarmos uma pós-pandemia que minimize os efeitos dramáticos já registrados. Vidas jamais serão repostas, mas devemos todos insistir em que haja uma firme preocupação nacional para evitar que novas mortes ampliem a tragédia atual. Será essa uma importante via de construção do futuro que merecemos.
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