Não, a pandemia não vai mudar o mundo. A pandemia vai acelerar algumas tendências, como as tecnologias digitais, que vinham provocando uma grande transformação econômica e social. A pandemia e o isolamento social já intensificaram o uso das ferramentas digitais para o trabalho remoto (home office), as reuniões virtuais e a multiplicação de lives. Esta tendência anterior à pandemia deve se consolidar no futuro porque, independente da pandemia, representa um enorme ganho de produtividade e uma excepcional abrangência e escala na comunicação.
Mas muitas especulações sobre o futuro do mundo e do Brasil no pós-pandemia tendem a transformar o transtório em permanente, sobrevalorizando as condições presentes, e a confundir os desejos com as possibilidades reais de mudança. Além daqueles que atribuem à pandemia as mudanças que já estavam em curso, com algumas tendências completamente independentes do impacto do virus.
O impacto transitório que a pandemia está tendo na globalização, fechando as fronteiras e cortando o fluxo mundial de pessoas e mercadorias, dificilmente persistirá no futuro. O nível de integração global das cadeias produtivas, os enormes ganhos de eficiência de todas as economias nacionais e, mais ainda, a aceleração das inovações e difusão das tecnologias de comunicação, que deve dar um salto de qualidade com 5G, vão retomar o processo mundial de integração econômica e comercial. É muito provável, em todo caso, que seja negociada e introduzida alguma regulação nova nas relações comerciais (principalmente nos serviços), mas nada indica na direção de um retrocesso permanente na globalização depois da pandemia, quando a vacina seja aplicada em larga escala. A direção do ritmo da globalização vai depender muito mais das eleições presidenciais nos Estados Unidos e sua influência na balança de poder global, que do efeito transitório da pandemia.
Muitas das especulações sobre o futuro destacam, com maior ou menor ênfase, que após a pandemia vamos ter maior solidariedade e cooperação internacional, mais preocupação com o meio ambiente e, mesmo, uma mudança no consumismo, um “consumo de forma mais ponderada e menos capitalista vão continuar presentes” (Jaqueline Bifano). Nada disto foi visível durante a pandemia. Ao contrário, fora sinais isolados de solidareidade, predomina um enorme egoismo, a disputa nacional pelos medicamentos e equipamentos de saúde, verdadeira pirataria, e a queda do consumo foi consequência do fechamento do comércio, tanto que foi acompanhado de uma explosão nas compras on-line. Especulações como essas são expressão de desejo ou podem constituir uma orientação para mobilização política em favor de um novo modelo de desenvolvimento.
Estão certas as previsões para a pós-pandemia que ressaltam a propagação do trabalho remoto e das reuniões remotas, da educação à distância, da telemedicina, do comércio eletrônico e da logística e transporte com veículos inteligentes (drones). Mas, como já referido, a pandemia apenas acelerou a utilização, até mesmo a descoberta, destas maravilhosas ferramentas de trabalho e comunicação.
Parece evidente que, excetuando esta aceleração das tecnologias de informação e comunicação, o futuro pós-pandemia vai depender mesmo de decisões políticas que, por seu turno, devem resultar da disputa de poder na sociedade. Neste sentido, a pandemia pode contribuir para alguma mudança pelo que desnudou das vulnerabilidades (já amplamente conhecidas), como a precariedade do sistema de saúde, as desigualdades nacionais e sociais, a concentração em alguns países de elos estratégicos das cadeias globais, os desequilibrios no processo de globalização, a beleza das cidades sem poluição nas emblemáticas imagens da China antes e durante a pandemia e, no caso do Brasil, a vergonhosa carência de saneamento básico.
A grande incerteza é política: até que ponto a denúncia das vulnerabilidades e a provocação do debate sobre as evidências negativas dos nossos problemas vão se traduzir em decisões políticas que reorientam as estratégias de desenvolvimento em escala global e nacional? A evolução futura do mundo vai depender do desempenho de Trump nas eleições. A pandemia tem tido efeito no ambiente político dos Estados Unidos, mas não devemos agradecer ao Covid-19 pela eventual derrota de Trump, que será influenciada mesmo pela ignorância e arrogância política dele no enfrentamento da pandemia. Será um caso histórico do benefício geral da imbecilidade de um governante.
A conclusão é sempre desoladora: Seja qual for a mudança que se avizinhe, para ser melhor precisaria de humanidade, coisa que parece em extinção com ou sem pandemia, com ou sem Trump.
Sergio C. Buarque estuda os fatos. Como outros (Joseph Nye inclusive) entende que a pandemia não vai mudar o mundo: a)o que há é reforço de tendências que já estavam presentes; b)desigualdades se tornaram mais visíveis, como o descalabro do saneamento básico no Brasil, e a retórica crítica subiu de tom, mas por ora não há nada na direção de sua correção para além da emergência; c)ameaças à globalização igualmente existiam antes da pandemia, mas a redução do fluxo de bens e pessoas que ocorreu durante a pandemia não será permanente (eu acrescentaria: se a vacina for eficaz); d)não há sinal de cooperação internacional maior pós-pandemia. Dada a disputa geopolítica EUA-China, diferente da “guerra fria”, que continuará independente do resultado da eleição americana, o Brasil precisa buscar uma posição de defesa de seus interesses nacionais permanentes, e fugir do alinhamento automático com qualquer dos lados.