No início da revolução industrial, um movimento conhecido como ludismo (derivado do seu líder chamado Ned Ludd) promoveu a quebra de máquinas introduzidas no processo produtivo em substituição do trabalho humano que gerou grande desemprego e precarização do trabalho. Era uma forma de protesto dirigida, principalmente, a salvar os empregos. Ao longo de dois séculos de expansão capitalista em todo o mundo, milhares de ocupações foram destruídas pelas inovações tecnológicas, abrindo caminho para novas formas de trabalho.
Na segunda metade do século passado, os jornais brasileiros ainda tinham linotipistas, profissão que manipulava uma máquina de composição de tipos de chumbo para a preparação da impressão (esta, mesmo, uma revolução no anterior modelo manual de composição). Seria razoável que os órgãos de imprensa evitassem as novas tecnologias de impressão, mais rápidas, de melhor qualidade e menor custo, para salvar os empregos dos linotipistas? É claro que não. Embora seja mais do que justo perguntar pelas pessoas especializadas naquela ocupação que perderam o emprego com a introdução das novas tecnologias.
Esta delicada questão é recorrente e vai dominar os debates políticos e os movimentos sociais das próximas décadas, com a acelerada difusão de novas tecnologias digitais, que substituem trabalho e exterminam profissões. A reivindicação da greve de motoristas de ônibus desta semana no Recife contra a substituição do cobrador por cartões digitais é um exemplo concreto dos conflitos emergentes com a transformação digital. Não dá para imaginar os ludistas do século XXI saindo às ruas, destruindo os sistemas de comunicação e as redes digitais que estão acabando com várias profissões.
Do ponto de vista político, vale o sábio conselho do pensador israelense Yuval Harari: “Não se preocupem com os empregos, preocupem-se com as pessoas”. Não é possível nem desejável a manutenção das ocupações que as novas tecnologias estão destruindo. Todo ciclo de inovação tecnológica elimina antigas ocupações e cria novas, na medida em que abre oportunidades de muitos novos produtos e serviços. O problema é que as pessoas (mais ainda os brasileiros), no geral, não estão preparadas para a migração das velhas para as novas ocupações, principalmente quando se considera a velocidade da mudança e as altas exigências de qualificação. Seguindo o conselho de Harari, cabe aos governantes cuidar das pessoas especializadas nessas ocupações que deverão desaparecer ou, de fato, já estão desaparecendo. Como? Nada de auxílio. É necessário um esforço muito mais abrangente e antecipatório de reciclagem profissional, que prepare a migração dos trabalhadores das velhas para as novas ocupações.
No caso da greve dos motoristas do Recife, os governos devem assumir que não há como preservar a função de cobrador de ónibus quando os sistemas digitais viabilizam processos mais ágeis e cômodos para o usuário, e de muito menor custo para os empresários. Não é possível nem é correto impedir esta inovação tecnológica. Ao contrário, deve ser estimulada. Entretanto, ao mesmo tempo em que aceitam o desaparecimento da ocupação, cabe aos governantes (e mesmo aos empresários) cuidar das pessoas, dos que perdem sua função. Para isso é necessário antecipar-se à entrada arrasadora das tecnologias com uma ação concentrada de requalificação e reorientação profissional dos trabalhadores deslocados da nova economia. Nada é fácil, considerando a idade média da maioria destes trabalhadores e o seu nível de escolaridade que, quase sempre, compromete a capacidade de aprendizagem.
Mas este é um imperativo social e humano, além de econômico, diante das transformações radicais que o futuro nos reserva, futuro que, convenhamos, já chegou e não vai parar. Nós estamos muito atrasados porque a escolaridade média dos brasileiros é muito baixa e, mais ainda, da população ocupada em funções que serão aniquiladas pela revolução científica e tecnológica. O desafio é enorme: antever as mudanças e iniciar, desde já, a qualificação dos trabalhadores que perderão sua ocupação, preparando-os para novas profissões, muitas das quais sequer são conhecidas. Como as mudanças serão muito rápidas e frequentes, preparar o trabalhador para a nova economia requer, antes de tudo, estimular novas criatividade, flexibilidade e proatividade, e novo trabalho em equipe, que aumentem sua resiliência e sua capacidade de adaptação às inovações.
NAO SEU MAIS VOU REPETIR A REPOSTA
MEDICINA E O “NOVO NORMAL“
MERALDO ZISMAN
Estaremos caminhando para uma Medicina sem médico nesse denominado mundo novo normal pós-pandemia? Vamos à minha profissão que exerço há mais de sessenta anos.
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Estaremos caminhando para uma Medicina sem médico nesse denominado mundo novo normal pós-pandemia? Vamos à minha profissão que exerço há mais de sessenta anos.
O perfil do médico passou a ser o de um profissional dispensável e com tendências a virtualidade. Adianto ao leitor: a qualidade não material está muito em moda, dentre as muitas novidades trazidas ou aceleradas por essa gripe sazonal que se diz ser uma pandemia (pandemia é o nome que se dá a qualquer epidemia de doença infecciosa que se espalhe por uma grande região geográfica, como um continente ou até mesmo todo o mundo como a Covid 19).
O que mudou foi a maneira da relação médico-paciente. Senão vejamos alguns aspectos da prática médica. Qual a importância e a necessidade de ter um profissional para palpar, auscultar, ter empatia, afinidade, solidariedade, se todas as respostas e perguntas tornarem-se simples algoritmos orientados pelas perspectivas estatísticas, de frequência, tendências, desvios padrões, percentuais, etc. A medicina tornar-se-ia num conjunto de meras probabilidades, expresso em números e baseado em exames complementares, sejam laboratoriais ou produzidos por imagens.
Benjamin Disraeli (1804-1881) político e escritor inglês já dizia no seu tempo: “Existem três tipos de mentiras: as mentiras, as mentiras deslavadas e a estatística”.
Por sinal, esquecemos repetidamente que cada criatura ao sofrer de uma enfermidade é de comportamento singular, dado que cada pessoa é um sistema biopsicossocial único — sofre, padece, sente, reage de maneira particular. Além disso, a Medicina não é um conjunto de sim ou não, certo ou errado e muito menos uma tendência com margem de erro para cima ou para baixo. Mas vamos aos fatos.
Contam por aí que há agora médicos que nem mesa de exame clínico possuem em seus consultórios. Baixam a cabeça depois de uma saudação para o macambúzio intitulado paciente e não ouvem/escutam/enxergam e muito menos vêm, ouvem ou falam com a pessoa que os procura. Acham que não há necessidade de examinar, palpar, sentir, tocar, pois há exames laboratoriais, ultrassonografia portátil e quejandos, que diminuem o seu trabalho, facilitado e concentrado nas tecnologias médicas.
Tais médicos passam a vida procurando patologias nas imagens distorcidas das tomografias e tantas outras imagens, almejando conhecer e aliviar o sofrimento daquele que os consultam. Imagino a distorção oftálmica de um radiologista que enxerga a vida de uma pessoa pela chapa de um RX. Agora, com a ressonância magnética, a tendência é o atendimento piorar cada vez mais.
Tomo como exemplo o PetScan (um exame de diagnóstico diferente dos demais exames de imagem, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética e outros assemelhados e que possui a capacidade de imaginar os problemas a nível celular através da emissão de radiação atômica). Ademais, a referida geringonça tecnológica mede a atividade metabólica das células, identificando o câncer precocemente. Para saber se vale a pena intervir ou envenenar um tumor (e muitas vezes o próprio paciente), identificado como maligno ou benigno, não importando o local onde apareça, mas não informa as emoções humanas.
Além do mais, será pertinente lembrar: existem médicos que tem nojo de tocar no doente, colocam sobre a mesa que os separam um computador e outras parafernálias tecnológicas como se fosse uma camuflagem midiática separadora das emoções dele e das do paciente. Os muros criados pela ciência tecnológica são uma boa saída para alguns ou a maiorias dos médicos, com seus ascos ou repugnâncias pessoais, evitando tocar o corpo, quanto mais a alma ou a mente da pessoa que necessita de cuidados.
Independente desta explanação inicial, agora está na moda discutir sobre a obrigatoriedade da vacina, se a vacinação compulsória é ou não democrática, se é ou não indicado o uso de um imunizante contra as doenças infectocontagiosas, seja por bactéria ou vírus.
Não sou ingênuo e sei que em tudo há política, ideologias, princípios religiosos e outros tantos aspectos que seria enfadonho citar. Mas a pergunta é: será que no próximo ano a covid-19 passará a ser denominada covid-21 e apenas por isso, passando o novo ano a ser considerado como neo-normal…?
Quando é que vamos nos recordar de que as doenças, apesar do sofrimento que causam, podem ser pensadas, aliviadas, numa tentativa de equilibrar um organismo que está sofrendo? O paciente não é vítima de azar ou maldição, mas se expressa através dos sintomas, de maneira socialmente mais elegante.
Apesar dessas apologias, um médico experimentado não desconhece a dificuldade de um paciente saber dizer o que está sentindo e o que procura. Imaginem como é o atendimento a pessoas com o uso exclusivo de tecnologias, caso do médico e seu paciente ficarem localizados em diferentes espaços geográficos e nem se conhecerem, nem se tocarem. Nos dias de hoje temos o pretexto da pandemia e depois – tenho quase certeza – aparecerão outros motivos, como se atender uma pessoa que sofre fosse apenas uma maneira de aumentar a clientela.
Será essa a função do médico e da Medicina nesse novo normal e virtual? Nada mais estúpido do que o Normal, imagine o Novo Normal. Se o antigo já não era nadinha, que dizer desse tal de novo normal?
Normal é como unanimidade e já dizia o nosso jornalista Nelson Rodrigues (1912-1980): ‘toda unanimidade é burra’. Imagine o mal que essa unanimidade neo-normal pode causar, propagada pelas atuais mídias sociais e profissionais.
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Meraldo Zisman – Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Álvaro Ferraz.
O problema é grave e complexo. Mas, o desmonte de antigas profissões se fazem aos poucos e não de repente. A função do cobrador há mais de vinte anos é esperada. Em 1997 tive que enfrentar esta situação nas negociações de aumento de tarifa com as empresas de ônibus em Brasília, acompanhando o secretário de trabalho, Nazareno Stanilao, do governador Cristovam Buarque. Os governos são lerdos e irresponsáveis e a sociedade não parece ter condições de se antecipar e de pressionar correta e justamente. Porém, os impactos das inovações tecnológicas se farão de maneira distinta em cada país. Pode-se imaginar que o desemprego ocorreria principalmente nos países desenvolvidos. Aparentemente não. As taxas de desemprego na Europa são muito maiores nos países menos desenvolvidos. Salama, em ensaio recente (ver seu site), sugere que os estratos sociais mais atingidos em países emergentes serão os médios. Um tema que merece a maior atenção, e desde já. Parabéns pelo artigo.
Sempre lúcido, Professor! Parabéns!!!
Além da fragilidade institucional para mediar tantos conflitos (distributivo, ético, acessos…), e essa inexplicável acomodação social e política diante de tantas aberrações das práticas vigentes de uso do poder, temos esses gaps gigantescos em relação ao futuro, cada vez mais presente, chegando para nos tirar da zona de conforto toda segunda-feira, e não mais daqui a alguns anos.
Esse hiato de futuro, especialmente no campo educacional, não apenas compromete a capacidade de adquirir as competências necessárias para essa rápida transição para o futuro 5.0 (5G, IA, impressão 3D, VR, AR, IoT, analytics, blockchain, nano-robótica, edição genética, etc), mas vai definindo os caminhos para uma ‘nova especiação’, com base nos fundamentos desse novo ser humano cibernético e permanentemente conectado em construção.
Essa iniquidade de acessos à essas tecnologias produzirá um fosso de desigualdades ainda maior do que toda a herança maldita dos séculos XIX e XX no deixou.
O conceito de ‘excluídos’, no contexto social e econômico, se dilata, e ameaça a coesão de nossa espécie de uma forma ainda mais contundente do que as diferenças de renda ou acessos a direitos humanos fundamentais.