Estamos longe de ter saído da turbulência provocada pelos mais diversos populismos autoritários do nosso tempo, particularmente no Brasil, mas também muito além do Brasil. A natureza do fenômeno é de tal ordem inédita que assedia não a periferia do sistema e os tumultuosos processos de modernização que aqui se deram com atraso, quando comparados à relativa estabilidade dos regimes liberal-democráticos do centro do capitalismo. Hoje é o próprio centro que se vê engolfado numa crise permanente, a começar pela mais antiga democracia moderna, a dos Estados Unidos. Populismo num caso e no outro, ainda que o nome comum não nos deva levar a engano.
Faz muito bem Rosanvallon ao nos lembrar que a democracia não é um modelo ideal, distante da história. Conflitos intelectuais e lutas sociais intensas modelaram a particular combinação das instituições liberais e democráticas no Ocidente a que queremos pertencer por origem e vocação. Seremos parte do Extremo Ocidente, mas ainda assim Ocidente, e hoje conhecemos de perto o abismo de uma das formas limites em que se pode degradar a democracia política, exatamente o populismo autoritário. Aí estão a polarização social destrutiva, a tentativa de corrosão dos poderes legislativo e judiciário, o uso deliberado de “paixões e emoções” para moldar a percepção da realidade por parte de amplos contingentes da população.
Impressiona o número de governantes, a partir do ex-presidente Donald Trump e demais “variantes de preocupação”, como o presidente Bolsonaro, que podemos enfileirar como arautos de uma visão de mundo que joga o povo contra a democracia (para citar outro estudioso, Yascha Mounk) ou, mais precisamente, contra as instituições contramajoritárias do liberalismo, no sentido de neutralizar o tradicional e imprescindível sistema de freios e contrapesos.
Impressionam as situações de conflito agudo que podem ser exploradas como política negativa ou antipolítica. Nosso autor se detém, por exemplo, e com acuidade notável, na saga dos “jalecos amarelos” que há pouco varreu a França. Uma radicalidade impotente, uma deliberada falta de interlocução no mundo político ou sindical, uma crença ingênua no poder horizontal das redes – tais são alguns traços que Rosanvallon detecta nos jalecos amarelos e, por certo, detectaria em outros movimentos do tipo. Este, o terreno no qual vicejam figuras equívocas, como Marine Le Pen ou, mais recentemente, Éric Zemmour. E, ai de nós, aí temos de incluir os populistas de esquerda, a esquerda rupturista, com seu desamor pelas formas da democracia política. Não há nenhuma muralha da China a separar as duas espécies de populismo e, num certo momento, a Itália da Liga (extrema direita) e do Movimento 5 Estrelas (“de esquerda”) pareceu a terra de eleição do novo fenômeno.
Há certamente razões de fundo para este desconcerto do mundo. Um clássico moderno, Antonio Gramsci, chamou a atenção, explicitamente, para o desencontro entre política e economia que já se desenhava fortemente nas primeiras décadas do século passado. A política, sempre presa nos limites dos Estados nacionais; a economia, cada vez mais internacionalizada, cada vez mais cosmopolita, como se girasse autonomamente, fora do controle dos cidadãos de cada Estado.
Este desencontro, como sabemos, se acentuou ainda mais nas condições da globalização, que atingiu em cheio formas de vida e de trabalho, desarticulou classes sociais inteiras, disseminou o desencanto e o mal-estar nas democracias contemporâneas. E um dos recursos demagógicos mais em uso, por isso mesmo, é o apelo aos nacionalismos, às fronteiras supostamente bem seguras e protegidas, à “retomada de controle” por parte dos cidadãos de cada Estado nacional, como se a rede de interdependências entre povos e nações não fosse um fato irreversível, a exigir cooperação em escala ampliada. E como se os enormes desafios à frente, a começar por pandemias e desarranjos climáticos, pudessem ser enfrentados e vencidos num horizonte nativista.
Mencionamos acima a desarticulação das classes sociais, dos sindicatos e partidos que a elas se referiam. Evidentemente, continuaremos a precisar de formas de agregação coletiva, ainda que profundamente modificadas. Mas é importante chamar a atenção para um argumento de Rosanvallon, que se ajusta com perfeição à nova perspectiva cosmopolita em que passamos a viver, queiramos ou não. Identidades sociais estáveis, diz o autor, têm se desmanchado ou, no mínimo, têm sofrido abalos consideráveis. É aí que Rosanvallon sugere uma certa “passagem da sociologia ao direito”, propondo a figura atualíssima do indivíduo, em escala planetária, como “sujeito de direito”. Uma figura que se desenha além das fronteiras nacionais e se apresenta, em prospecção, como um ser concreto, de carne e osso, que não pode ser discriminado, excluído e muito menos cancelado em lugar nenhum do mundo. Um paradoxo dos tempos pós-modernos, a ser devidamente levado em conta.
Pode ser este um horizonte, ainda que mediato, ou simultaneamente mediato e imediato, para uma esquerda de novo tipo ou, se quisermos, para democratas de novo tipo. Se for este o horizonte, o tema dos “direitos fundamentais” – de novo, Rosanvallon – estará assim, cada vez mais fortemente, na ordem do dia, incidirá inclusive nas escolhas políticas locais ou nacionais, que constituem nosso contexto público mais direto, ainda que em conexão crescente com todo o mundo. Direitos fundamentais, “bens públicos não rivais” nem excludentes, como, por exemplo, o direito à saúde e a um ambiente não degradado, têm um potencial de universalização que contraria a tentação populista e a exaltação irracional de particularismos que tal tentação traz consigo.
Uma palavra de esperança, por fim. Há dois anos, aproximadamente, o Chile parecia viver um destes períodos de política negativa, de anomia social e crise econômica sem fim. Herança distante, certamente, da ditadura pinochetista, cujos danos persistiram, parcialmente, nos anos de Concertación. Âmbitos de vida tão essenciais como o sistema de saúde, de educação ou o de pensões e aposentadorias continuaram a reproduzir desigualdades crescentemente intoleráveis.
Ao que parece, a política negativa está recuando. A singular Constituinte chilena pode chegar a bom termo, ainda mais agora que um político como Gabriel Boric teve uma vitória categórica e promete governar olhando para o bem público. O contexto continua dificílimo, mas, se Boric for quem supomos que é, pode estar nascendo, sob nossos olhos, a esquerda do século XXI. Já não era sem tempo.
Caríssimo Luiz Sergio!
Obrigado pelo belo, sereno e esperançoso texto.
Tão civilizado que, lendo-o, tive saudades do “tempo da delicadeza” em que indivíduos como você, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder eram adversários de um José Guilherme Merquior, mas se tratavam com respeito, sem os xingamentos e a linguagem chula a que nos acostumamos numa “waste land” em que um pornográfico como Olavo de Carvalho virou filósofo, e um degenerado como Bolsonaro virou presidente da república.
Que 2022 assinale a possibilidade de virarmos essa página infame (acho que, infelizmente, na “História Universal da Infâmia” de Borges sempre cabe mais um…) da nossa história.
Feliz Ano-Novo!
Luciano