A gravura de Willian Blake (1757-1827), pintor inglês, poeta e abolicionista, simboliza a Branca sendo sustentada pela Índia e pela Negra. Trezentos anos mais tarde, tomei a liberdade do revisitar as Três Graças. Creio que elas podem simbolizar nossas Mães Brasileiras, os Três Ventres que gestaram a mixtude genética brasileira. Miscigenação feita principalmente pelos ventres da índia e da africana e minoritariamente pelo da branca.
Os índios, povos originários, habitavam estas paragens, como sabemos. Os brancos portugueses que aqui chegaram eram do sexo masculino. Raríssimas brancas os acompanharam nos três primeiros séculos. Assim, o português teve filhos com a índia. Os rebentos resultantes desta conjunção carnal – fêmea ameríndia e macho europeu – foram chamados de caboclos e caboclas entre outros nomes dados à esta carnação mestiça primeva: caipira, caiçara, mameluco, cariboca, curiboca. Os portugueses passaram a fazer filhos e filhas também com a cabocla. Por sua vez, a cabocla também gerou filhos e filhas com o caboclo e o índio. O índio também concebeu com a cabocla. Os mestiços não concebiam com as mulheres brancas.
Quando os negro-africanos chegam ao Brasil em grandes vagas, o contingente foi majoritariamente composto por varões e poucas mulheres. As africanas eram mais numerosas do que as brancas e menos numerosas do que as índias e caboclas. Os homens negros tiveram filhos e filhas com negras e índias, gerando cafuzos e cafuzas, igualmente com as caboclas. Os varões não brancos não tinham filhos e filhas com as mulheres brancas. As mulheres negras tiveram filhos com o português, dando origem a mulatos e mulatas – estes sempre resultantes da conjunção do homem branco com a mulher negra. Os mestiços primevos, (mulatos, caboclos e cafuzos) por sua vez tiveram filhos e filhas entre si, distanciando desta mestiçagem primeva.
A mixtude brasileira se deu “de gré et de force”. Tanto mais consentida na medida em que a maior parte dos acasalamentos passaram a ser realizados entre os mestiços não primevos. Esta configuração inicial formada pelos três ventres foi bastante alterada a partir do Século XIX, com as vagas de emigrantes europeus, árabes, asiáticos.
De mulatos, caboclos e cafuzos iniciais, ampliamos a mixtude. Somos todos, hoje, pardos, caburés, mulatos, caribocas, mamelucos, escurinhos, negros, japas, cafuzos, caboclos, caiçaras, galegos, cabrochas, branquelos, crioulos, caipiras, amulatados, amorenados, indígenas, silvícolas, turcos, trigueiros, sertanejos, sefardins, árabes, negrinhos, guascas, morenos, roceiros, loros, canguçus, mandis, biribas, esbranquiçados, pés-na-cozinha, polacos, pardavascos, capiaus, sararás, bugres, tapuias, carcamanos, alemoas, chocolates, cafés-com-leite, etc… “Nous avons l’embaras du choix” como carta de identidade.
Estudos genéticos preliminares confirmam a importância do ventre da índia e da negra na formação de nossa mixtude. A herança genética brasileira materna de origem africana e ameríndia é ordem de 35% cada uma. Enquanto que a herança genética materna de origem europeia é da ordem 14% da população brasileira (DNA Mitocondrial). Quanto a herança genética paterna de origem europeia é da ordem de 75%, enquanto que as heranças genéticas de origem africana são da ordem de 15% e ameríndia inferior a 1% (Cromossoma Y). A amostragem é bastante reduzida, insuficiente para representar a totalidade da população brasileira. Ademais, a ocupação, povoamento e colonização do Brasil assumiram formas bastante distintas de uma região a outra, igualmente no tempo histórico, como entre São Paulo e Minas Gerais, por exemplo.
A mixtude se expressa pelo genótipo e pelo fenótipo, condições próprias a natura e não à cultura. Impossível escolher cor de olhos, tipo de cabelo, a cor da pele. Trata-se de condição inalienável que no Brasil se exprime através de uma paleta de fenótipos bastante heterogênea. Não há como reduzir um país mestiço a dois tipos de fenótipos: branco e negro.
Porém, no tocante a cultura, a mixtude é um processo conflitivo ainda em construção que busca identidade. Afirmação que ainda se expressa pelo olhar que o próprio mestiço tem de si, bem como pelo olhar do outro sobre o mestiço.
A máxima de Sartre, “tout un homme, fait de tous les hommes et qui les vaut tous et que vaut n’importe qui”, é um alento para esta caminhada.
A gravura de Blake ilustrou o livro de John Gabriel Stedmann intitulado “The Narrative of a Five Years Expedition against the Revolted Negroes of Surinan”.
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