Recorro a uma passagem do livro “Nossos anos verde-oliva”, de Roberto Ampuero, para tentar entender o escárnio cometido pelo Partido dos Trabalhadores, ao assinar a nota do Foro de São Paulo, de reconhecimento da eleição do ditador Nicolas Maduro. Como até as árvores da floresta amazônica sabem, o ditador venezuelano montou uma farsa, fraudou as eleições e sua “vitória” no tapetão não foi reconhecida pelo mundo democrático. Nem mesmo por Lula e seu governo, apesar das dubiedades de sua política externa, contaminada pelo viés ideológico de ser conivente com as “ditaduras camaradas”.
Mas antes, umas rápidas palavras sobre Ampuero. O autor do livro sabia o que estava falando, por experiência própria. Militante da Juventude Comunista do Chile nos tempos de Allende, se exilou em Cuba logo após o golpe de Pinochet e na Alemanha Oriental. Casou-se com a filha do então embaixador cubano na União Soviética, Ulysses Cienfuegos, um revolucionário dos tempos da Sierra Maestra.
A convivência com as ditaduras de Erich Honecker – o mais ferrenho stalinista do “socialismo real” da era brejnevista – e com a ditadura de Fidel Castro, na ilha considerada por “nuestra esquerda” como o farol do socialismo em Nuestra América. Roberto Ampuero, claro, desiludiu-se com a esquerda, tornou-se um intelectual de centro, muito próximo do escritor Vargas Llosa.
Vamos à sua reflexão extremamente atual para tentar entender a lealdade do PT e do governo Lula com ditaduras e governos totalitários, do seu campo ideológico. Diz Ampuero:
“ O que leva o ser humano, ou melhor dizendo o que leva vários seres humanos, a condenar uma ditadura de direita e celebrar, ao mesmo tempo, uma ditadura de esquerda? Que retorcido mecanismo mental os conduz a denunciar o abuso, a tortura, a marginalização, o escárnio, o exílio, a repressão e o assassinato daqueles que pensam diferente sob uma ditadura de direita, mas os faz justificar essas mesmas medidas contra aqueles que se opõem a uma ditadura de esquerda? (…) será que isso se deve à ignorância, à hipocrisia ou ao oportunismo, ou a uma lealdade mal-entendida em relação a bandeiras ideológicas?”
Traduzindo para os nossos dias: que categorias mentais levam O PT e Lula a serem tão contundente na denúncia da putsch bolsonarista de 8 de janeiro e, ao mesmo tempo ter sido tão conivente, por anos a fio, com as violação à democracia e aos direitos humanos, cometidas pelas ditaduras da Venezuela, Nicarágua e Cuba? O que leva essa esquerda a chamar de fascista Bolsonaro, Trump e Milei, mas ao mesmo não chamar Daniel Ortega, Nicolas maduro Miguel Dias-Canel de ditadores?
A primeira explicação está na visão instrumental da democracia. Ela não é vista como um valor universal, mas um expediente tático. Falta a Lula a dimensão de um Enrico Berlinguer, ex-secretário do Partido Comunista Italiano, que nas comemorações, em Moscou, dos 60 anos da Revolução Russa jogou água no chope de Brejnev ao pronunciar um discurso rompendo com a visão tradicional dos partidos comunistas sobre a democracia, afirmando com toda ênfase a democracia como um valor universal. Opunha-se, assim, à concepção dogmática de que a verdadeira democracia é sob a forma de ditadura do proletariado. E a verdadeira ditadura era a democracia burguesa!
Já nosso presidente perdeu uma oportunidade de ouro de se afirmar como um líder mundial profundamente comprometido com os direitos humanos e a democracia. No seu discurso de abertura da Assembleia da ONU simplesmente não disse uma mísera palavra sobre a Venezuela. Como Ombudsman do mundo falou, de tudo. Da Guerra da Ucrânia, da Guerra do Oriente Médio, da fome, da crise climática mundial, mas sob o conflito no seu quintal – a crise da Venezuela – ficou cego, surdo e mudo.
Há uma segunda categoria mental por trás da dubiedade de Lula e do alinhamento automático do seu partido com ditaduras “progressistas”: a ideia de que os fins justificam os meios. O sacrifício da democracia se justificaria pelos “avanços sociais”. Raciocínio semelhante os comunistas tiveram no passado, ao justificar os crimes de Stalin em nome da transformação da União Soviética em uma potência mundial. Só que no caso das três ditaduras os chamados avanços sociais são, hoje, uma balela. Cuba, Nicarágua e Venezuela vivem grave crise social e econômica, com parte expressiva de sua população fugindo do país para escapar da miséria.
Perdoa-se os ditadores aliados por outro fator: as afinidades ideológicas, particularmente o antiamericanismo pueril, uma herança perversa da guerra-fria do século passado, associado ao antiocidentalísmo. A geopolítica do governo Lula aposta em um polo orbitando em torno do eixo China-Rússia. O primeiro país como a grande potência econômica e o segundo como o grande poderio bélico. O eixo China-Rússia é a principal âncora a sustentar os regimes de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Sem eles, as três ditaduras já teriam afundados. Ora, se o governo Lula aposta neste eixo, ele não pode romper com as ditaduras vizinhas.
Qual o problema das alianças preferenciais do governo Lula? Ela está em contradição com a vocação do Brasil, cujo valores são os do mundo ocidental. Entre os quais, a democracia e a observância dos direitos humanos, pedra angular da doutrina diplomática brasileira, ao lado do pragmatismo responsável, das soluções pacíficas e do respeito à autodeterminação e à soberania territorial.
Há uma leitura ingênua do episódio da desastrosa nota assinada pelo Partido dos Trabalhadores, como se isto tivesse acontecido a revelia de Lula. Há até quem veja no episódio uma virtude: a separação entre partido e governo. A ideia de o PT como um partido com uma ampla democracia interna, no qual cem flores desabrocham, é uma peça de ficção. Assim como o peronismo nos tempos em que o Peron era vivo, o Partido dos Trabalhadores se estrutura à base do princípio da verticalidade. A última palavra é sempre do caudilho e nada de importante acontece sem a sua aprovação.
Nunca é demais relembrar. Lula estendeu o tapete para Maduro em 2023, na esperança de que exerceria influência positiva no sentido de levar o ditador venezuelano a realizar uma eleição limpa e respeitar seus resultados. Nosso presidente deu com os burros n’água. E um dia após o ditador se autoproclamar vencedor na eleição venezuelana, o Partido dos Trabalhadores divulgou uma nota reconhecendo a vitória de Maduro. Agora repetiu o feito. O mais factível é que há um jogo combinado entre o presidente e seu partido para, dentro de pouco tempo, seu governo reconhecer a vitória de Maduro.
Não há muito futuro para uma esquerda prisioneira de valores oriundos da guerra-fria. Se vida inteligente existe nesta seara, está em outro tipo de esquerda, da qual Gabriel Boric é a maior expressão na América Latina. Sua posição sobre a Venezuela e seu entendimento da democracia como valor universal são insofismáveis. Nela, não há o relativismo denunciado por Roberto Ampuero. A esquerda capaz de se reconciliar com os valores do iluminismo vem de Boric, não de Lula. Suas lealdades distorcidas são bolas de ferro presas aos seus pés, impedindo-o de ter protagonismo até mesmo entre os países vizinhos, que dirá no mundo.
Quanto ao Foro São Paulo, já passou da hora de ir para a lata do lixo da história. Se tivesse juízo o PT pularia desse barco rapidinho.
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