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Recife
Há autores que, às vezes, marcam nossas vidas. Podemos não conhecer bem suas obras ou trabalhos, mas uma frase, um verso, podem significar muito.
Manuel Bandeira, o poeta pré-modernista, tem um significado especial em minha vida de leitor. Gosto muito de seus versos livres, de sua maneira de fazer poesia.
Lembro-me da minha adolescência, na qual, como a maioria dos jovens, não fazia sucesso, não era muito notado – principalmente pelas moças que eu tanto desejava. A crise da adolescência foi vivida e, não posso negar, sofrida.
Não tinha problema. Na minha cabeça e para os poucos amigos, sempre repetia a estrofe:
“Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que quero
Na cama que escolherei…”
Um deslumbramento. Ser amigo do rei, ser importante e notado, ter a mulher que desejo – algo quase impossível à época.
Descobri até onde era Pasárgada, uma cidade da antiga Pérsia, e associava o rei ao Xá Reza Pahlevi, do hoje Irã, com toda a suntuosidade de sua corte. Ignorava a opressão que existia por lá.
Muitos anos depois, quando vim para o Recife, minha primeira busca foi pelas ruas do Centro. Conhecia Evocação do Recife e queria saber os locais em que o poeta havia passado parte de sua infância. Lá me encontrei e redescobri a cidade por muitos anos:
“Rua da União,
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás da casa ficava a Rua da Saudade,
Onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora,
Onde se ia pescar escondido.”
O centro está degradado hoje, mas ainda mantém os nomes. Sempre que posso, vou visitar. Morei lá e tenho um carinho especial pela Boa Vista, sem esquecer o mitológico nome da Rua das Ninfas ou a melancolia da Rua da Soledade.
Passei bons tempos por lá, no Moscozinho, embaixo do Círcolo Católico, tomando minhas Cuba Libres e esperando Byron para irmos ao Dom Pedro, na Rua do Imperador. Perto dali também fica o Parque Treze de Maio, onde, sempre que podia, levava meus filhos para ver o mini zoológico.
Andava todos os sábados pelo centro, revendo lugares que o poeta eternizou.
No dia 21 de fevereiro, recebi um telefonema. Na Rua da União vai ter Bacanal.
Fiquei preocupado – na minha idade, não sei se é politicamente correto. Explicam-me os amigos que é apenas uma brincadeira, um bloco de frevo que sai do Espaço Pasárgada, onde o poeta morou na infância.
Um aparte se faz necessário. O espaço, que chamam de museu, é uma bela casa, mas tem apenas duas salas ocupadas com pôsteres e alguns objetos antigos, que poderiam ser muito melhor explicados. Merece muito mais cuidado.
Por que chamam o bloco de Bacanal? A explicação é simples: ele leva o nome de uma bela poesia escrita pelo poeta em 1918:
“Quero beber! Cantar asneiras
No êxtase brutal das bebedeiras…
Se me perguntarem
Que mais queres,
Além de versos e mulheres?
Vinhos, o vinho que é o meu fraco!
Evoé, Baco!”
Vamos conferir. Quatro da tarde da sexta-feira.
Seis ou sete músicos, muito bons, formam a orquestra. Um grupo pequeno de passistas à frente mostra a evolução da dança – endiabrados e muito bem treinados. Pouco a pouco, os transeuntes se aproximam. Lá pelas cinco, começa o desfile.
As ruas das minhas caminhadas, próximas à tradicional Faculdade de Direito, ganham vida. Os poucos foliões se tornam muitos, incorporando-se à festa momesca.
O desfile não é longo, mas segue até a Rua da Aurora, reverenciando a estátua do poeta e trazendo o clima nostálgico dos velhos carnavais. Momentos de magia, alegria e descontração.
Lembro-me dos tempos em que cheguei à cidade. Recife sempre teve nos bloquinhos de rua sua tradição carnavalesca. Famílias, colegas de trabalho e amigos de bar os organizavam.
Sempre com humor e picardia, sempre com momentos de crítica e irreverência. Ainda hoje esses blocos existem, mas, cada vez mais, são engolidos pelas grandes agremiações e pelos grupos hiperestruturados.
A resistência faz parte. Meu bloco de familiares e amigos, Chegou o Carnaval, não passará dos 48 participantes – uma maneira de confraternizarmos com alegria entre aqueles por quem temos muito afeto e carinho.
A noite foi chegando. Exaustos e felizes, seguimos para o OGE, boteco à moda antiga, perto da Assembleia Legislativa. Cervejas para refrescar e um pastelão japonês dividido em seis pedaços como petisco. Nunca tinha visto. Uma novidade que gostei. Só lembra vagamente o pastel de feira das minhas priscas eras em São Paulo.
Meu carnaval inclui os frevos desses bloquinhos e as recordações que me trazem. Como diria Bandeira: “Recife bom. Recife brasileiro, como a casa de meu avô”, na Rua da União.
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