Comentários do livro A construção da democracia no Brasil de Alberto Aggio

Democracia
Os 40 anos ininterruptos de democracia no Brasil, comemorados no dia 14 de março, é um feito, em um País que tem uma história de muito autoritarismo. Na história republicana brasileira tem-se apenas uma feito maior, se, e com benevolência, considerarmos a estreita e elitista democracia a dobra dos séculos XIX/XX, entre 1889/1930. Tomando em consideração os dados mais consistentes, o percentual de eleitores no Brasil naquela época não chegava a 2% da população, enquanto o percentual de eleitores nas eleições de 2022 foi de 77%. A título de ilustração, analfabetos e mulheres não votavam em 1889, e como o regime eleitoral era censitário, além de ser homem o eleitor tinha de ser alfabetizado e ter um mínimo de renda.
Foram muitas as comemorações no passado mês de março por ocasião dos 40 anos de retorno à democracia que se deu com a posse do vice-presidente José Sarney, após a internação do presidente eleito pelo colégio eleitoral Tancredo Neves. Foram dias tensos naquele março de 1985, pois ainda havia, no âmbito das Forças Armadas, militares que não concordavam com o fim da ditadura.
No sábado de 14 de março de 2025, a Fundação Astrojildo Pereira promoveu, com apoio do Correio Braziliense, no Panteão da Pátria, uma cerimônia comemorativa com a presença de José Sarney que discursou do alto de seus 95 anos a respeito do seu mandato presidencial, no qual o País dotou-se de uma nova Constituição. Seu maestro, o então deputado Ulisses Guimarães, denominou-a de Constituição Cidadã. Finalmente, depois de 21 anos os brasileiros voltavam a ter plena liberdade de se organizar e se expressar.
A cerimônia contou com a presença de diversos deputados e deputadas constituintes, entre eles Miro Teixeira (RJ) e Maria de Lourdes Abadia (DF), assim como do ex-Senador, Cristovam Buarque e da ministra do STF (via vídeo), Carmem Lúcia.
Ocorreram muitas outras comemorações, inclusive no Congresso Nacional, mas insuficientes para exprimir a relevância de se estar construindo o período mais longevo da democracia no Brasil. Com os supetões normais em um País cuja elite é marcada, em grande parte, pelo racismo, machismo e nepotismo. Elite de pouco compromisso com a pátria e muito com seus interesses imediatos, de pouca visão de futuro, prisioneira do imediatismo. Que despreza a natureza e flerta com o autoritarismo.
Porém, há um bom legado deste momento. Alberto Aggio, professor da Unesp, historiador conhecido, especialista na história recente, nacional e latino-americana1, com sua habitual sofisticação intelectual nos presenteou com o livro A construção da Democracia no Brasil, 1985-2005. Mudanças, metamorfoses e transformismos, publicado pela Fundação Astrogildo Pereira em associação com a editora Anna Blume.
É um livro relativamente pequeno, em relação a densidade da matéria abordada, com suas 225 páginas, que o leitor certamente absorverá em dois goles. Tendo, por vezes, que ler e reler alguns trechos. Tem um estilo agradável, apesar de denso conceitual e analiticamente, sem se preocupar de ser exaustivo, como diz o seu prefaciador, Luiz Sérgio Henriques: “Não há episódio essencial esquecido ou mal iluminado. Embora a preocupação não seja a reconstrução exaustiva dos acontecimentos”.
O livro é dividido em sete capítulos, dos quais quatro (3,4,5 e 7) são ocupados com o Partido dos Trabalhadores, dando a impressão de ser este o principal protagonista do processo. E, aparentemente, é verdade, pois dos 40 anos transcorridos o PT esteve no poder quase metade do tempo, ou seja, quase 16 anos atualmente: 8 anos do primeiro período Lula, 5 e meio do período Dilma e os quase dois anos e meio atuais. Deverá chegar a mais em final de 2026, caso Lula se candidate e seja eleito.
Embora o livro seja muito mais amplo do que a interpretação das metamorfoses que o PT vai assumir como protagonista central, vou me concentrar neste aspecto. Sem deixar de lembrar ao leitor que a interpretação do processo de construção da democracia no Brasil vai muito além, baseado em quadro teórico-analítico inspirado em Antônio Gramsci e Luiz Werneck Vianna, do qual pode-se discordar sem deixar de reconhecer seu valor, em permanente debate com a literatura a respeito desse período.
Com sofisticação, o autor tenta desenhar em que consiste a cultura política do petismo, diferenciando-a do lulismo. Parte do conceito de cultura política desenhado por Almond e Verba nos anos 1960 ,e seus desdobramentos e mudanças nos anos 1990.
O autor não desconsidera que o PT foi contra a eleição indireta de Tancredo Neves, expulsando três de seus deputados. Que votou contra a Constituição de 1988, embora a tenha assinado. Que não participou do governo de Itamar Franco, suspendendo Luiza Erundina por um ano de “todos os direitos e deveres partidários” por ter aceito o convite para integrar o governo do presidente mineiro, em 1993. Em litígio com algumas correntes do PT desde quando foi eleita Prefeita de São Paulo, Erundina acabou deixando o PT em 1997.
O PT foi criado na confluência de três grandes forcas sócio-políticas: os sindicalistas, os católicos de esquerda das comunidades eclesiais de base (CEBs) e políticos e militantes diversos da oposição à Ditadura, provindos ou não do exílio. Para o bem ou para o mal, a genialidade política de Lula conseguiu manter a unidade no Partido, com perdas pouco expressivas politicamente, e levar o partido ao poder. Para isso, ele adotou práticas caras aos sindicatos e às comunidades eclesiais de base (CEBs), escutando as diversas forças em luta interna, e buscando uma solução que contemplasse a maioria. Criticado por alguns de não ter posição própria, Lula adotou a negociação como forma de manter e crescer a força política-eleitoral e social do partido. E isso em conjunturas diversas, adotando estratégias e táticas distintas para chegar aquilo para o qual é criado um partido, o poder político.
Para interpretar a trajetória do PT, que vai da defesa do socialismo à social-democracia sem jamais o declarar; da recusa de alianças para depois aliar-se aos setores políticos oligárquicos; de partido de ética para “partido convencional”, nas palavras de seu líder máximo, Aggio funda-se em três noções centrais: a política do rechaço, a economia do afeto e a escolha racional, ou “momento maquiavel” nas palavras do autor. Trajetória que levou o PT do sonho de criação de uma nova sociedade, para o sonho de manutenção do poder a qualquer custo. Transformações que ocorrem na substituição de posturas políticas , sem aparentemente negar o passado.
A política do rechaço inicialmente às elites que haviam se comprometido com a Ditadura, que explica suas posições radicais supracitadas no início, com relativo sucesso eleitoral, transformou-se no discurso de “nós e eles”, seja em relação ao PSDB, eleito seu adversário principal, seja em relação aos “ricos”. Discurso apropriado, recentemente, pela extrema direita, e que está na base da atual polarização, que tem suas raízes ainda nos anos 1990.
A economia do afeto, expresso de maneira sintética nos discursos do Lula de que “todas as pessoas têm direito de comer três vezes por dia”. E que diz da forma diferenciada a preocupação do PT com os menos abastados materialmente, assim como, lembra o principio da fraternidade, caro aos cristãos. Explica a força de suas politicas sociais e o sucesso no combate a miséria.
A escolha racional nasce após três derrotas eleitorais (1989, 199 e 1998), e a conclusão de que é necessário fazer concessões e alianças para chegar ao poder. É preciso dar sinais de obediência as regras de mercado. E o PT, como diz Daniel Aarão Reis, decidiu se submeter “a lei de bronze do jogo pesado da grande política”, com sucesso em 2002.
Falta no livro, no meu ponto de vista, um quarto elemento constitutivo da cultura petista que é a consulta às bases políticas, o basismo, a adoção do rumo de um partido de massas no lugar de um partido de vanguarda, cara à esquerda brasileira no Após Guerra. E no lusco fusco que caracteriza o PT, um partido que não tem donos da verdade, mas são eles mesmos, em seu coletivo, os seus donos, desde que a verdade seja construída com a base. Era assim nos sindicatos, a assembleia decidia entrar ou sair das greves, era assim nas comunidades eclesiais de base católicas (CEBs), expresso em seu método, ver-julgar-agir, construído coletivamente.
Independentemente de nossas simpatias políticas, o livro merece ser lido para entender este processo da conflitiva e nunca acabada construção da ordem desejada, como diria Norbert Lechner, que não pode ser outra que a ordem democrática. Atualmente ameaçada por um Parlamento que cava a própria sepultura buscando absorver os crimes políticos contra a democracia, como se fora dela ele pudesse existir.
1 Ver a respeito o livro de sua autoria: Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana. Brasília: FAP, 2019.
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