Minha filha e minha mulher acham que sou exagerado; e um amigo diz que sou “glauberiano”, por causa do meu amor às hipérboles. Pensei nisso quando, lá pela página 100 do livro Um Defeito de Cor (total de páginas: 947!), de Ana Maria Gonçalves, exclamei de mim para mim mesmo: essa mulher merece o Prêmio Nobel de literatura!
Poderia, é verdade, ter sido atribuído a João Ubaldo Ribeiro, autor de Viva o Povo Brasileiro. Afinal, os dois livros têm muitos pontos em comum. Um e outro têm por tema a desumanidade da escravidão brasileira. E, detalhe curioso, a Ilha de Itaparica, na Bahia, serve de pano de fundo a ambos. São, além disso, livros enóóóórmes, duas epopeias dentro da melhor tradição romanesca mundial, que vai (estou simplificando abusivamente) do Dom Quixote de Cervantes a Guerra e Paz de Tolstói. Depois, como se sabe, veio James Joyce, e daí em diante todo escritor que se pretende escritor de primeira linha virou um obcecado pela escrita. A habilidade linguística usurpou da capacidade de narrar uma história apaixonante aquilo que define o que é ser um grande escritor. As narrativas longas, em cuja companhia passávamos dias e dias, foram relegadas, no mundo, à categoria pejorativa dos best-sellers; e, entre nós, aos noveleiros da Globo que ainda hoje exploram filões super gastos como o do filho de pai desconhecido que se apaixona pela própria irmã. (Ugh!)
As exceções confirmam a regra. É o caso do nosso inimitável Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas, por exemplo, é ao mesmo tempo uma experiência estética impactante e uma história (ou estória, como ele preferia dizer) eletrizante. À parte esses casos excepcionais (continua a simplificação abusiva), tudo que é escritor se põe a querer promover sua revolução joyceana. Entre nós então… Foi preciso que Mario Vargas Llosa, um peruano, se apaixonasse por Euclides da Cunha e pegasse a história de Antônio Conselheiro para escrever A Guerra do Fim do Mundo. Chico Buarque de Holanda (de quem, vou logo avisando, sou fã, mesmo sem carteirinha), nosso Chico, que talvez ganhe mais um “Jabuti” este ano, meteu-se nos últimos tempos a escrever romances inteligentíssimos dos quais entramos e saímos sem saber direito que diabo acabamos de ler. Por isso estou abrindo uma campanha: um Nobel de Literatura para Ana Maria Gonçalves! Afinal, João Ubaldo morreu há pouco e outros conterrâneos “nobelizáveis” também já esticaram a canela faz tempo: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto… Mas por que ela? Porque Um Defeito de Cor é um livro extraordinário. Recupero a etimologia da palavra destacando seus elementos: extra e ordinário – um livro que vai além do ordinário. Dou só um exemplo. Tratando da escravidão, evidentemente, a autora…
(Ah!, esqueci de dizer: Ana Maria Gonçalves é mineira, de Ibiá, onde nasceu em 1970. Como o livro foi lançado em 2006, quando ela tinha 36 anos, isso significa dizer que deve ter começado a escrevê-lo com pouco mais de trinta anos! Fico invejoso quando sei de uma coisa dessas. Eu, que já passei dos 60 anos e, até agora, nada!… Mas, graças a Deus, sou capaz da inveja, mas não do rancor. Retomo assim o que dizia antes deste parêntese invejoso.)
Tratando da escravidão, evidentemente, a autora, como dizia, encara o fato de que, como lembra Gilberto Freyre (que publicou sua obra-prima Casa-Grande & Senzala também com trinta e poucos anos), “não há escravidão sem depravação sexual”; não há escravidão sem estupro. Isso é tão óbvio que virou um lugar comum. Mas o lugar comum, às vezes tão justo e tão necessário, é o inimigo número 1 da grande literatura. E Ana Maria não pratica a literatura menor. Foi por aí que, logo nas primeiras páginas, o seu livro, que conta a longa saga de uma escrava africana chamada Kehinde, me impactou. Mas os que primeiro violaram sua infância não eram nem brancos nem portugueses…
Kehinde e sua irmã Taiwo eram duas crianças na faixa dos sete anos. Um dia, em plena idade da brincadeira, o que o mundo tem de pior a oferecer aos inocentes desembarca na sua porta. No vilarejo onde vivem, guerreiros de um rei chamado Adandozan, falando iorubá, língua diferente da que elas falavam, chegam à casa onde as duas moram juntamente com um irmão, a mãe e a avó. O irmão e a mãe são mortos – a mãe, como sói acontecer nessas ocasiões, depois de estuprada por mais de um guerreiro que se revezam em cima e dentro do seu corpo. Kehinde se lembra da avó, “batendo a cabeça no chão e pedindo que fossem embora, mas eles não se importavam”. Até aí, nada de novo sob o sol. O sol da África, no começo do século XIX. Mas o que vem depois chega a dar um susto no leitor. O que seria a continuação do lugar comum, o estupro também das duas irmãs, é substituído por uma obscenidade mais insuportável. Ou só suportável porque Kehinde, a narradora de sua própria história, conta as coisas com uma inocência de fazer cair o queixo. Ela e a irmã, pequenas demais para serem penetradas, são obrigadas a masturbar, uma ao lado da outra, dois dos invasores: “O guerreiro forçava a minha mão contra o membro, que, de início, estava mole, e mexia o corpo para a frente e para trás, fazendo com que ele ficasse duro e quente”. Depois de algumas estocadas, “a minha mão e a de Taiwo ficaram sujas com o líquido pegajoso e esbranquiçado que saiu dos membros dos guerreiros e espirrou longe”.
É assim que começa a sua história. Depois dessa desgraça, vêm outras. Um dia, depois de abandonarem o fim-de-mundo onde viviam e irem morar num vilarejo, Kehinde e sua irmã são capturadas e levadas para um navio negreiro com destino ao Brasil. A avó, depois de suplicar aos captores e de fazer “exercícios” (tipo flexões de marinheiro) para mostrar que ainda era uma mulher capaz de trabalhar, é autorizada a embarcar com elas. As duas, Taiwo e a avó, morrem na travessia e são jogadas no mar. Kehinde conta tudo isso com a mesma inocência desarmante das primeiras páginas. A fome e o fedor do porão onde elas estão comprimidas junto a outros infelizes são narrados como se fossem coisas menores. Mesmo a suprema humilhação (as palavra são minhas: Ana Maria Gonçalves não se permitiria tais lugares comuns) de urinar e defecar deitadas é narrada com candura.
Kehinde, sozinha, chega ao Brasil, onde a história continua. Ainda não sei como vai terminar. No momento em que escrevo, estou “apenas” na página 384 do livro! Não cheguei nem à metade… Mas, como diria Caetano, “a bola ama Pelé”. E mais de trezentas páginas na companhia de Ana Maria Gonçalves são mais do que suficientes para me convencer de que a literatura ama a grande escritora que ela é. Deveria ganhar o Nobel de literatura. O Brasil nunca ganhou um Nobel. Nem vai ganhar tão cedo nos domínios da economia, da física ou da medicina. Já poderia, óbvio, ter ganho o da Paz. Dom Hélder Câmara, por exemplo, chegou perto. E uma literatura que já deu ao mundo Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa deve ter sua vez e sua hora.
Vamos começar uma campanha?
Compartilho a opinião sobre esta obra magistral.
Li este livro fazem 4 anos e de fato é magnífico. A autora fez uma pesquisa de peso.
Luciano, fico feliz em saber sobre outros leitores-admiradores de Um defeito de cor.
Angela
Valho-me dos benefícios da delação premiada para declarar que sou o amigo citado no parágrafo inicial do artigo de Luciano Oliveira. De fato, Luciano tem de Glauber Rocha apenas a hipérbole. Digo isso para no mais concordar com ele, já que não compramos o vanguardismo irracionalista e delirante de Glauber. Aliás, também aqui divergimos parcialmente, pois vou com Glauber até Terra em Transe. Daí para a frente fico com a opinião de Luciano. Falando no entanto do que importa, o artigo, Luciano volta a me dar razão. Afinal, não é pouco hiperbólico indicar ao Nobel uma autora cuja obra ele resenha sem ler sequer a metade. Mas incorre nesses excessos com tanta fluidez e graça que o leitor seduzido leva o que não comprou. Chove tanto quanto o major Siqueira, o hilariante personagem machadiano que deita verbo sobre o leitor sem todavia molhar o solo da realidade.