Ester Maria Aguiar de Sousa
Muito se tem falado, hoje, no Brasil, sobre a corrupção. A questão central é: entre corruptos e corruptores, de quem seria a culpa desta quase tragédia que assola o país. As opiniões se dividem, alguns considerando a corrupção um crime hediondo e que deve ser punido com todo rigor, outros, simpáticos ao sistema vigente, tentando explicar a corrupção como uma doença endêmica, que assola o Brasil desde a troca de colares por ouro, feito entre indígenas e portugueses e que, de lá pra cá, só tem fortalecido uma cultura tolerante com a apropriação privada da coisa pública.
A primeira pregunta que fica no ar é a de se procurar saber, de uma maneira geral, qual a capacidade do ser humano, tanto para a prática da honestidade, como para a desonestidade. Dizem que o Groucho Marx tentava desvendar esta questão com uma frase muito simples: “Há uma maneira de descobrir se um homem é honesto: pergunte a ele: Se responder ‘Sim’, ele é um vigarista”.
Convenhamos, não vivemos em um mundo de anjos, portanto, a trapaça faz parte de nossas experiências, desde a infância. São desde as pequenas “trelas” de comer escondido um doce, antes da festa, até trapaças, na vida adulta, quando procuramos omitir ganhos ao Imposto de Renda.
Procurando entender a questão por uma ótica mais psicológica, afirma-se que o comportamento humano varia entre duas motivações opostas: se por um lado queremos ser honestos e reconhecidos como tal; por outro, procuramos nos beneficiar de algumas trapaças e conseguir o máximo de vantagens, em determinadas situações. Segundo informa Dan Ariely, estudioso que trabalha este tema em economia comportamental e é autor do livro ”A mais Pura Verdade Sobre a Desonestidade”, “o senso de nossa própria moralidade está interligado com a frequência da trapaça com a qual nos sentimos confortáveis. Essencialmente, trapaceamos até o nível que nos permite manter nossa autoestima como a de indivíduos razoavelmente honestos”.
Seguindo esta interpretação, desde que trapaceamos somente um pouco, tiramos alguns benefícios, sem grandes prejuízos para a o outro ou para a sociedade, não nos culpamos destes deslizes morais e podemos nos orgulhar da nossa vida honesta. Então, o “X” da questão, estaria no volume e na frequência com que alguém trapaceia, dos danos que as suas trapaças gerem à sociedade e do sentimento de autoengano de quem comete a infração à regra moral que deveria por limite à ação desleal.
Uma das explicações mais utilizadas para o fenômeno de descumprimento das leis é a fornecida por Gary Becker, professor da universidade de Chicago, segundo a qual as pessoas cometem crimes tomando por base uma análise racional da avaliação da situação, numa relação de custo e benefício, sem que se leve em consideração princípios éticos de certo ou errado.
Para que levemos em consideração a validade desta teoria, seria necessário que o autor do delito tivesse pleno conhecimento das vantagens que obteria com a prática do crime; que levasse em consideração a possibilidade de não ser descoberto; e que medisse o risco da punição que receberia, caso falhasse na sua prática.
Como toda teoria que toma por base a racionalidade humana, esta explicação também peca por simplificar o problema. Mesmo sendo o homem um ser racional, a maior parte de suas ações são tomadas por escolas baseadas na tradição, em experiências passadas, portanto, muitas das suas práticas não são, apenas, escolhas racionais.
Sabemos que a prática da trapaça varia com o tempo e entre as sociedades. Também que elas variam quanto ao objeto que é trapaceado. Dentre os tipos de trapaça, o que nos interessa observar é a que mais tem sido discutida entre os analistas da realidade brasileira, frente aos grandes escândalos vivenciados pela nação, nos últimos anos: a corrupção.
Primeiramente, podemos alegar que a corrupção e a desonestidade vem sendo práticas crescentes na sociedade, e isto pode significar, possivelmente, que nos deparamos com uma crise moral, onde estes delitos não venham representando um peso forte entre as normas vigentes.
Depois, é possível que se tenha estabelecido uma aura de tolerância com atos de apropriação da coisa pública, tornando-se, muitas vezes, prática aceitável nos grupos, principalmente, entre aqueles grupos com maior chance em participar desta “orgia” e uma certa apatia do público em geral, especialmente, entre os menos escolarizados e com menor acesso a informação.
Neste emaranhado de falcatruas e personagens envolvidos, na maioria das vezes, estes atos não chegam ao conhecimento público, ou só são de conhecimento de uma elite, que se mostra conivente, o que facilita a impunidade e a possibilidade desses agentes continuarem a usufruir do conceito de pessoas sérias e honestas. Como sabido, a falcatrua tem uma armadura que a protege, que é o sigilo. Até que que tais práticas sejam conhecidas pelo público, elas “não existem”. Somente quando elas são flagradas, denunciadas e divulgadas é que se tornam uma “realidade objetiva”, merecedora de crítica e de punição.
Dentro das instituições envolvidas nestes atos desonestos também se gera, na maioria das vezes, conflitos de interesses entre os agentes especuladores, de como deve ser distribuído o “bolo” resultante da prática da propina e ganhos outros. Como dividir este bolo de forma desigual, porém não conflitiva? quem leva mais? Até que ponto o corruto passivo deseja contribuir para a festança?
Um dos fatos que facilita a ampliação de práticas de corrupção é que tais atos são compartilhados: há o corrupto ativo e o corruto passivo, possibilitando a criação de uma rede de solidariedade de grupo, onde um protege e blinda o outro de possíveis consequências, caso tais fatos se tornem públicos.
Algumas pessoas e empresas passam a perceber estas relações de práticas de corrupção ativa e passiva como um processo de reciprocidade, e passam a investir dinheiro e tempo para conseguir constituir uma certa relação de obrigação e fidelidade. Neste sentido, os lobistas governamentais desempenham um papel fundamental no sistema de informações, mediando os conflitos de interesse entre os políticos e os empresários.
Esta “virose de trapaças” faz com que a sua contaminação chegue até pessoas que se achavam imunes, mas que passam a adotar práticas semelhantes, principalmente se sofrerem a influência de agentes com quem estabelecem uma relação de hierarquia, seja no Estado, seja na empresa. Assim, uma pessoa crítica e que se diz moralista, após algum tempo, passa a adotar o ponto de vista daqueles aos quais criticava antes, tornando a corrupção um ciclo vicioso, difícil de ser debelado.
Mesmo que alguns dos partícipes dessas tramas não pensem em vantagens pessoais, no curto prazo, ao utilizarem o argumento de que “os fins justificam os meios”, repassando as vantagens adquiridas para alguém que detém o poder de fazer chegar aos objetivos almejados, e acreditem que podem continuar com o espírito tranquilo de que nada do que praticaram pode atingir a sua honestidade, findam como personagens da mesma trama.
O que fica evidente é que quando a corrupção evolui tanto nas relações entre Estado e sociedade, significa que as chances de práticas de trambiques são facilitadas, e a prática sem obstáculos quebra o decoro dos envolvidos, num processo em que o corrupto não precisa mais de apelar para o autoengano, para a imagem de homem probo, mas, simplesmente pode alegar: “sou, mas, quem não é?” e a sociedade, indefesa, esquece até a sua capacidade de indignação.
Nesses casos, a própria sociedade passa a não se chocar mais com os atos de corrupção, que passam a ser banalizados, e que as normas que regulam o comportamento honesto já não são claras para o cidadão. De repente, é como se os acontecimentos se tornassem incontroláveis.
Para combater atos de improbidade é preciso que decisões políticas e jurídicas com base numa rigorosa moral passem a vigorar. O problema é que uma mudança cultural de curto prazo é muito difícil, e, no longo prazo, novas formas de controle precisam ser adotadas, ampliando-se o monitoramento de ações que possam facilitar a falcatrua. Será que isto é possível?
Quem sabe, quando ficar claro que a corrupção grande e pequena está prejudicando a sociedade inteira, que com esse nível de insegurança jurídica e falta de respeito a qualquer tipo de contrato o país não conseguirá crescer e se tornará mais pobre – quem sabe, quando isso ficar claro, a sociedade e seus representantes conseguirão aperfeiçoar instituições que permitam controlar a corrupção. Corrupção também é o fato de que 1/3 dos motoristas dirigem sem CNH, corrupção é instalar um aplicativo nos celulares que permite receber e espalhar comunicado de onde a polícia rodoviária está fazendo uma blitz, corrupção é comprar seja o que for sem nota fiscal porque é mais barato (e conivente com roubo cargas – o que o comprador prefere esquecer). A lista é imensa.
O artigo da Ester, sobre as explicações da lógica do comportamento do corrupto, instiga uma questão que tem me intrigado: o que é que faz com milhares de pessoas honestas, incapazes de falcatruas, sejam corrompidas moralmente ao aceitar, não ver, tolerar, conviver, desculpar aos corruptos, por causa de ligações pessoais ou ideológicas? Isso é o que acontece hoje com um imenso número de decentes militantes do PT que eu conheço ou com os quais debato. Não praticam corrupção, mas aceitam os corruptos, desculpando-os ou simplesmente negando-se a ver o crime. Gostaria de ver opiniões sobre esta questão.
Caro Cristovam:
Esta também tem sido uma das questões que venho fazendo, pois tenho amigos da mais alta qualidade “capturados” por esta paixão que cega e os impede de absorver a realidade.
Creio que a paixão política, alimentado pela fogueira ideológica – da qual desta ninguém escapa – não é algo que tenha relação com a razão e sim mais fruto de relações afetivas, de amor mesmo. E aí, meu amigo, estamos em um terreno minado que vai desde a loucura religiosa do ISIS, cortadores de cabeça, até nossos amigos petistas, que perderam as suas.
Estou lembrando de um extraordinário personagem que tinha o mais profundo desejo de lutar contra as injustiças do mundo. Se preparou lendo todos os livros de cavalaria existente em sua época e saiu pelo mundo, em puro estado de êxtase por, afinal, estar cumprindo sua nobre missão salvífica. O problema foi que sua “ideologia” deslizou seu juízo para o mundo do delírio e aí onde tinha um Moinho de Vento ele via dragões; uma bacia, uma reluzente coroa e por aí foi. A diferença entre Dom Quixote e o PT, é que nosso maravilhoso louco de Cervantes conseguiu atrair para dentro do seu delírio apenas uma pessoa, Sancho Pança, o PT atraiu milhares de militantes — o que é muito mais perigoso.
João Rego
Minha reflexão é que há, grosso modo, três razões para tal comportamento, embora nenhuma o justifique: a paixão política que leva à cegueira (já apontada por João Rego); a lógica do “rouba mas faz” (programas sociais); a naturalização do fato, “todos roubam” ou “o sistema leva a isso e se você quer sobreviver tem que fazer assim”. Tem um dado curioso nesse discurso que é quando se pergunta se Lula e Dilma sabiam. Militantes e simpatizantes respondem de acordo com a “trapaça confortável” citada por Ester (Dan Ariely). A trapaça é confortável porque eles dizem, “Eles poderiam até saber, mas não se beneficiaram pessoalmente.” Como se isso significasse um diferencial ético a favor dos presidentes. Pois eu acho que, diante das responsabilidades do cargo, não há qualquer atenuante ético entre “saber e não se locupletar” e “saber e roubar”.
Excelente artigo! Ester consegue fazer a distinção entre as falcatruas do nosso dia a dia “grandes e pequenas” e analisar a cruel crise de corrupção que atravessamos graças ao governo desses últimos 12 anos.
Infelizmente Ester a corrupção entrou no “rol” das “trelas”, como se fosse um comportamento inadequado a mais. Sempre achei que corrupção não é coisa mensurável. Corrupção pequena, média e grande? Lamentável não? Acho que é uma crise moral mesmo e das grandes. Sempre falei que para mim não interessa se alguém rouba um real ou 100 reais. Sempre achei de uma hipocrisia descomunal ver pais fazendo discurso contra a corrupção enquanto dá ao filho, sem habilitação, uma verba para subordar o profissional da blitz, entre outros exemplos citados pela Helga. Hoje ainda existem os “simpatizantes”, aqueles não se deixam corrompor, mas que estão cegos, desculpando os corruptos como bem expressou Critovam ou enfeitiçados pela fogueira ideológica citada por João Rego. Começar com os filhos ou netos, já seria de bom tamanho.
Magnífico e lúcido artigo de Éster Maria Aguiar de Souza.
Com relação ao comentário do ilustre Cristovam Buarque, gostaria de ousar e dizer que também: não ver, tolerar, conviver, não condenar ou desculpar aos corruptos dos demais segmentos partidários são também corrompidos moralmente.
Não entendo como como os intelectuais, notáveis ou fazedores de opiniões negam-se a emitirem o menor comentário condenando a corrupção ou incompetência de políticos e administradores públicos afora o PT. Isso é induzir aos desprevenidos que não existe corrupção além do PT, daí o enorme perigo.
Devemos condenar a corrupção na sua amplidão e estaremos condenando TODOS os corruptos do PDT, PT, PMDB, PSDB, etc.
Estamos carentes da verdade e ética.
Os nossos maiores problemas não estão no PT e todos nós sabemos disso.
Bela análise Ester. Há uma frase de Bertrand Russell citada por Bottomore que eu considero perfeita: “O bom comportamento, até do cidadão mais exemplar, deve muito à existência da polícia”. Ou seja, é a parte final do seu artigo; nosso país precisa urgentemente aprimorar as formas de controle que tentem evitar e/ou identificar os atos de corrupção. Claro, aliado a isso deveríamos caminhar na construção de melhores condições de vida, em especial, a educação, pois só assim a maior parte da população condenará o “vale tudo”. Mas meu ceticismo diz que isso parece uma meta quase impossível de se realizar.
Li as várias tentativas de explicação da leniência ou cumplicidade generalizadas de brasileiros de diferentes perfis em face da corrupção. Suponho que nenhuma parece suficiente, tanto que continuamos propondo razões de variável consistência. Longe de mim propor uma que satisfaça a mim próprio. Não obstante, acrescento alguns palpites. Antes de tudo, a corrupção está entranhada em toda a nossa formação social. Portanto, mais do que nos casos de incidência rotineira em outras sociedades, no Brasil a força explicativa do etnocentrismo é muito mais poderosa. O etnocentrismo é uma verdade consensual na antropologia e na psicologia social, isto é, tendemos inconscientemente a aceitar os valores e práticas dominantes na sociedade em que vivemos. Por isso há muito passei a dar importância muito maior a quem diz não, a quem nada na contracorrente. Ademais, o racionalismo ensinou-me paradoxalmente a perceber o quanto o ser humano é movido pelas paixões. Esta é a força talvez mais poderosa das ideologias, um complexo abstrato de interesses e desejos passível de cegar as inteligências mais agudas. Quando penso nas sandices em que gênios como Rousseau, Marx, Engels, Trotsky e Rosa Luxemburgo acreditaram (para citar apenas alguns exemplos de utópicos de esquerda), concluo que o ser humano pode em princípio acreditar em qualquer coisa. Em suma, entre todas as crenças mais delirantes talvez a mais sustentável seja acreditar em Deus. Pelo menos não há como demonstrar racional e empiricamente sua inexistência. Talvez no fundo o católico Chesterton tenha razão: quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Se alguma coisa aprendi, foi a contentar-me com meu racionalismo que muito pouco explica e por isso se acautela contra qualquer tipo de presunção dogmática.
Como me é cansativo e desgastante participar de um debate como este. Mexe muito comigo, me tira do sério, da aparente paz. É como a vida inteira tenhamos feito esta discussão, e, no final, nos deparamos com um Petrolão. Que é o Petrolão 1, pois ainda vai ter o 2 e o 3.
A vida inteira ouvi os mais velhos dizerem que éramos o país do futuro, mas já há alguns anos que eu martelo na minha cabeça que o futuro é hoje. O FUTURO É HOJE. O Brasil é este aí, com este sangue manchado por suas raízes nunca confrontadas. Como vai se dar uma grande mudança neste país? Podemos, sim, melhorar, lutar, mas a iminência de uma nova trupe populista sempre vai nos assustar. Por isso continuo martelando minha cabeça, agora com uma marreta.
Fernando, gostei muito de seus comentários. Você consegue, como muito poucos, relacionar a questão de uma forma teórica, racional, com seu lado humano, sua vivência pessoal. Muito bom mesmo.