Luiz Alfredo Raposo
O governo atual semeou ventos. Inventou de gerir uma economia de mercado por um modo ofensivo às regras básicas de uma economia de mercado. Não adiantaram advertências. O grupo governante sempre as recebeu, bem ao estilo petista: não como sugestões de caminhos mais sensatos, mas como vozes de inimigos do governo e do Brasil. O resultado é que o investimento privado desabou, abriu-se um buraco nas contas públicas e o país colhe, agora, a tempestade: uma crise econômica cruel, inteiramente made in Brazil. Vai no seu sétimo trimestre consecutivo e, a cada dia, se agrava, produz um estrago novo. Já desempregou quase dois milhões de trabalhadores, já fechou milhares de fábricas, lojas, negócios privados. E bate de volta nas contas públicas, levando-as a um estado de calamidade.
E, se plantou o desapreço aberto aos oponentes, agora colhe, com os resultados que entregou, um desapreço mais fundo: “nós bem que avisamos”… Na campanha de 2014, a resposta à denúncia das dificuldades já evidentes foi sempre a mesma: invencionice da oposição, o paraíso estava por um triz. O que a oposição apontava traía uma intenção de “maldades” que o governo não iria fazer “nem que a vaca tossisse”. Começou a desmentir-se, já na semana seguinte à eleição. E veio a descoberta do mar de lama: as evidências claríssimas da roubalheira metódica nas estatais (que beneficiou os partidos da “base” e fez podres de ricos alguns próceres). E, enfim, o escancaramento recente das tentativas suas de ludibriar a Justiça para proteger figurões. O resultado foi a perda total de legitimidade. Temos, hoje, um governo incapaz de governar, emparedado num palácio. Justo no momento em que mais se precisa de governo. Donde o sentimento geral: não dá mais. Já não se trata de desavença ideológica, nem de paixão partidária ou coisa do gênero, mas de algo muito mais elementar e poderoso: o instinto de sobrevivência, que acordou e ligou suas sirenes.
A cena final será sem grandeza, podemos ter certeza. Cena de reintegração de posse, com a gritaria das alegações e o choro vão de sempre do grupo desapossado. E, sobretudo, com o esperneio dos 25 mil cupinchas arranchados no serviço público, e dos pelegos dos “movimentos sociais”, de repente sem suas boquinhas. E a inquietação no exército de 35 mil cabos eleitorais, a soldo dos homens do generalíssimo Lula. Mas isso passará, o Brasil é maior.
Assentada a urgência da substituição, qual a melhor maneira de operá-la? O sentimento quase unânime, hoje, é de que é o impeachment. A solução política, obra do corpo de representantes eleitos. E há várias razões para isso. Crime é o que não falta, acabo de ouvir da adv. Janaína Paschoal, uma das autoras do pedido em tramitação. E o impeachment é mais rápido e de improbabilíssima reversão pelo Judiciário. Depois, é um serviço prestado pelo Congresso, uma solução que lhe devolve um grão de protagonismo e de legitimidade, de que ele anda carente. Mais importante, o impeachment cria para o novo governo as melhores condições políticas iniciais. Com efeito, ele só se dá, como é sabido, por decisão de 2/3 dos congressistas mais um. O quórum para a aprovação de uma emenda constitucional. E é uma decisão dupla: o afastamento do titular implica a automática instalação de seu vice. Logo, o dever moral de começar dando-lhe um maciço apoio. E o Congresso agirá também por instinto de autopreservação.
E aqui principiam as perguntas. Não seria melhor que o TSE impugnasse a chapa toda e convocasse novas eleições? Pessoalmente, acho que não e torço para que essa não seja a saída. O vazio criado pelas eleições antecipadas em época de crise abre espaço ao aparecimento de figuras, digamos, pouco republicanas. Expressões da antipolítica. Os magros, por exemplo. Eles que me perdoem, mas política, no Brasil, não é para magros. E não é de biotipo, mas de temperamento e métodos que falo: daqueles de alma gótica, que acham que política é a continuação da guerra por outros meios e ao diálogo paciente preferem as “ações enérgicas”. São reconhecíveis pelo tipo valentão, a língua desabrida. E por darem a entender que dispõem de uma arma simbólica (vassoura, ippon, espada, chiqueirador) para “fazer o serviço”: varrer corruptos, derrotar dragões e marajás, impor aos congressistas e aos concidadãos uma certa ideia (sempre pobre) de ordem social. No Brasil, não é de hoje, terminam mal, em ópera bufa, esses farsantes.
Há também a grei freirática e santarrona, perigosa pela inocência. Parece saída de um convento ou de jejuns num deserto, e está sempre a pregar a regeneração política pela eliminação da política e pela reforma da natureza humana. É melhor nem tentar, qualquer um, aí, terminaria fagocitado pela “sabidoria” ambiente. Engolido pelos sabidos circundantes. Rei ou rainha da Inglaterra de seu próprio êxito.
Não, política não é um departamento das Santas Missões. Nem a continuação da guerra: é uma alternativa a ela, aos meios truculentos de ação. E por isso, requer gente gorda e cordial, que sabe sorrir. Que sabe cativar e ser cativada. Gente constitucionalmente propensa à negociação, à arte de selar acordos, conciliar interesses vários e atender a um interesse mais geral. Que consegue não aumentar o tamanho de um problema, ao tocá-lo. Que compreende que o nível da política, em geral, apenas segue o da sociedade. Mas que, às vezes, a política puxa para cima a sociedade, quando a parte mais esclarecida desta se convence de que, se política não é o caminho ideal para a santidade, até hoje não se encontrou sucedâneo melhor para ela. E sua moralização passa, não por desistir dela, e, sim, pela criação de instituições ou regras protetoras que resistam bem ao tranco, ao jogo bruto.
Voltando ao impeachment, falei de apoio ao novo governante. Apoio para que? Para um governo de união nacional, com a missão de encaminhar a saída da crise econômica e ética. Encaminhar como? Construindo com as forças que o escolheram um conjunto de propostas consensuais que possam ser implementadas no horizonte de governo. O rumo já está definido e o discurso inicial já está pronto: dirá da missão de começar a reparar os estragos feitos pelo antecessor, sobretudo no que tange à despesa pública e às estatais. E reformar o sistema de representação e a economia interna do Legislativo. Com isso e com uma equipe séria, de reconhecidos craques gerenciais, se dará uma resposta à demanda de moralidade das ruas. E a confiança do empresariado e dos investidores externos começará a voltar. É crucial ao novo governo ser ético também num ponto: não recuar diante de medidas impopulares. Nunca esquecer que muito da impopularidade da atual mandatária (e da ruína do país) se deve às medidas “populares”.
E Temer, terá ele estatura pessoal para tamanha missão? Os “puristas” acham que não e invocam a conivência de seu partido com os desmantelos reais ou imaginários da nossa politica. Manifestação recente nesse sentido veio do ministro Barroso, do STF. Estranhamente, nunca se ouviu dele palavra de indignação ou sequer de desconforto com o PT, o criador da ladroeira em quadrilha, em escala industrial e planetária… Esquece-se de que o PMDB, após a redemocratização, virou um partido tão grande, num universo partidário tão fragmentado, que não pode não apoiar governo algum, sob pena de não haver governo. O que fez dele sócio de tudo de ruim e de bom que ocorreu com o país, desde então. E, agora, ele não quererá governar sozinho. Nem poderia, também não é grande a esse ponto. De Temer, o tempo dirá. Acredito que dar-lhe, agora, um crédito de confiança é dar-se o país uma chance. Por enquanto, o que posso é olhar o passado e nele tentar vislumbrar alguma semente do futuro. E a biografia política do homem é longa, já dura 30 anos e sete disputas eleitorais vitoriosas. O que mostra seu gosto pelo métier, que é a condição primeira do sucesso. Sem gosto, sem queda, não se faz nada bem feito, na política como na cozinha, remember Dilma. Sua capacidade de liderança ficou demonstrada, quando ele se fez primus inter pares, escolhido pelos colegas para presidir a Câmara dos Deputados por três vezes, em 1997-2001 (dois mandatos) e 2009-2010. E ele está, há 15 anos seguidos, no comando do seu partido. O que será uma força extra, dadas as circunstâncias.
Outra coisa: Temer é ficha-limpa. Não tem escândalos no currículo (lembra de algum?) e não foi indiciado na Lava Jato, mas apenas citado em duas ou três delações, a propósito de indicações de nomes e de contribuições de campanha. Algo legal, até prova em contrário. E sua isenção nesse ponto terá de ser provada. De resto, oferece-se a ele uma oportunidade preciosa de desarmar os espíritos, logo na chegada: abdicar solenemente da intenção de se candidatar a um novo mandato. A idade, aliás, ajuda… E com ele, virá de presente para os brasileiros a volta do discurso civilizado. A linguagem educada, com começo, meio e fim. Sem divisionismos, sem o “nós contra eles”. O discurso próprio à liturgia do cargo, com que um presidente mostra seu respeito à nação e dela se faz respeitar.
Estamos no olho da tormenta. E na Páscoa, começando abril. O mais cruel dos meses, diz o verso de T.S. Eliot. Curiosamente, o inverso do que averbou, encantado, o escrivão Caminha, na certidão de nascimento do país: mês de ventos favoráveis. E isso acende em mim uma esperança: o mais cruel para uns talvez seja o mais grato para outros… Aproveito, então, para desejar: Boa Páscoa a todos. Feliz abril, Brasil!
Poço da Panela (Recife), abril/2016
De novo, um texto brilhante de Luiz Alfredo. Lúcido e elegante, tem o mérito de abrir uma sendeira benevolente para os gordos desse mundo (uni-vos) – fato que me comoveu. Em tempos de brigadas de toda ordem, é bom saber que alguém ainda lhes discerne na alma extravagante, a inconfundível cordialidade e o gosto rematado pela negociação. Além, bem entendido, do tirocínio teimoso que sobreviveu intacto às dobras da cintura, tão importante nesse “abril despedaçado”.
Excelente texto, na forma e no conteúdo. Análise meticulosa e penetrante.
Um abraço, amigo Luiz Alfredo!
Concordo com o articulista Luis Alfredo Raposo de que o melhor caminho para começar a tirar o Brasil do atoleiro em que se encontra é o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Temer como presidente, para tentar um consenso mínimo em torno de medidas de curto e médio prazo (como alinhavadas em “Uma ponte para o futuro”, o documento publicado há algum tempo no site da Fundação Ulysses Guimarães). Se esse vai ser o caminho que será trilhado ninguém sabe ao certo. Só não entendi o que gordos e magros tem a ver com a situação atual da política, pois o Temer é magro, o FHC também, o Cunha também. O mais gordo aí ainda é o Lula, bom representante (desse ponto de vista) de um país em que mais de metade da população tem excesso de peso ou é obesa, e onde existe um problema grave de obesidade infantil. E nem por isso o país é mais cordial. Como mostra o Prof. José de Souza Martins, o Brasil é o país em que ocorrem mais linchamentos, linchamentos físicos, não estava se referindo a linchamento moral. Só posso imaginar, então, que sua imagem subjacente na “teoria dos gordos na política” seja a de Don Quijote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Panza, o primeiro insensato e temerário, o segundo gordinho e bonachão, aceitando melhor a realidade.
Obrigado a Fernando Dourado Filho (que, como negociador, se reconheceu) e ao amigo Clemente Rosas pelas avaliações compreensivamente acolhedoras. E também a Helga Hoffmann, que me dá a oportunidade de me estender sobre gordos e magros. Usei os adjetivos (eu que sou fisicamente magro) como simples metáforas. Para apontar dois modos antitéticos de ver e fazer política. “Gordos” (e agora aspeio), os que digerem bem a realidade da força dos oponentes; a ideia das soluções de compromisso, mais econômicas em muitas situações; e, coisa de maior alcance, a concepção esportiva da disputa política, à luz da qual vitória e derrota são resultados triviais e provisórios. Donde, mais do que a possibilidade, a necessidade do apreço pelos oponentes. Eles são o outro time! Esse modo de pensar e agir (esse “ethos”, diria um filósofo amigo meu), se não contribuir para a eficiência e a moralidade, pelo menos favorece uma certa imprescindível delicadeza. Permite que, numa luta entre humanos, se abra a florzinha inocente da etiqueta.
Inverta os termos e terá o modo de ser dos “magros” em política. “Magros”, não os esbeltos, os maneiros de corpo, mas os indelicados, os que detestam adversários e acordos, e sonham um dia dançar sobre o cadáver de seus inimigos. Quem me sugeriu a imagem foi a lembrança de personagens presidenciais nossas malogradas pela “magreza”. E para mim, ninguém mais politicamente “magro” do que nossa parruda presidente… Cordial abraço em todos.
Com a explicação, ficou mais palatável a tal distinção entre “gordos” e “magros” na política no artigo de Luiz Alfredo Raposo. Está mais p’ra Miguel de Cervantes Saavedra. Enfim, alegorias arriscam diferentes interpretações. Ainda mais quando vejo que, na atual discussão, o vice-líder do governo na Câmara, Silvio Costa, deputado federal por Pernambuco, que é gordíssimo, está sugerindo aos deputados que “fiquem doentes” (para que o impedimento constitucional não passe). De resto, concordo que a polarização extrema e a xingação sem argumentos prejudicam a busca de uma solução para sair do atoleiro. Minhas esperança é que o impeachment abra caminho para um consenso mínimo que, segundo um analista que não perdeu a cordialidade, Prof. José de Souza Martins, deveria poder incluir petistas honestos desiludidos com a história mais recente do PT.
De inteiro acordo, Helga. Inclusive quanto ao bom que seria contar com gente séria do PT no próximo governo. Abraços Luiz Alfredo