De tudo fica um pouco, como diz o poema de Drummond. Do amor fica muito. Quero dizer, fica muita memória. Fica sempre a memória do amor com seus bons e maus bocados, com seu rastro de iluminação e devastação, pois o amor, por ser humano, contém forças ambivalentes na sua própria e impura raiz. Por ser uma força humana tão poderosa, ninguém o vive impunemente. Também não o vive sem a coragem do risco e da perda. O amor, disse um poeta passionalmente corajoso, é incompatível com a covardia.
O amor acaba, sempre acaba enquanto ato, enquanto viagem e aventura compartilhada. O que fica, o que sobrevive, acaba por força da natureza das coisas domesticado pela acomodação e a rotina. Logo, sobrevive antes como modo especial de amizade. Dou-lhe esse nome impreciso. Que outros melhor o definam. O que sei é que não há amor que sobreviva por muito tempo quando é movido pelas forças que associamos à noção do amor romântico, isto é, o amor movido à paixão. A paixão que todo dia provoca uma revolução cósmica, queima uma floresta, descarrilha um trem, devasta uma cidade, introduz a turbulência dos sentidos nos códigos ordeiros e tediosos da vida corrente. Essa corrente do amor passional é dominadora e indizível, mas realisticamente condenada ao tédio ou esgotamento. Por isso sempre acreditei que o amor romântico não deve casar. Ele começa como negação radical do mundo da rotina e acaba calculando orçamento, brigando por bens, detido na vara da família. É cruel dizê-lo, mas esta é a força dos fatos.
O amor acaba, no sentido romântico do termo acima esboçado, mas dele sobrevive a memória. A memória é infalível. Nos seus labirintos indecifráveis lateja, como duração, a presença consoladora do que perdemos, do amor que já não é. Mas aqui a ambiguidade é novamente reposta, pois a memória tanto consola quanto dói, sublima a perda na medida em que também renova a dor do amor perdido. Essa memória ambígua que transportamos pode sempre nos ensinar a amar ainda o que perdemos, mas também ensina que lembrar é uma ferida insanável. Por que insanável? Porque não há como decantar a memória, mesmo do amor mais belo e pleno, expurgando-a da dobra negativa que em tudo existe.
Estendamos a noção do amor para aqui também abrigar o amor que nos vincula à família, sobretudo aos pais que são nossos modelos primários. Indo além disso, acrescento os amigos a esse cortejo de sombras colado à própria sombra que somos movendo-se pelos incertos caminhos da vida. Essas sombras inapartáveis são a evidência de que nunca estamos sozinhos. Ao mesmo tempo, são também a evidência de que estamos sempre sozinhos, já que a sombra é apenas o resíduo, o caldo simbólico da vida vertida na corrente que passa.
A memória é já passado e todavia é sempre presente. Por isso convém moer com zelo o grão de sabedoria que nos liberta do peso do passado. O passado que mais dói é o passado da memória represada, o passado reprimido como defesa contra a memória sempre provando que nos movemos na corrente do tempo, um tempo cujas margens sempre avançam e recuam mesclando passado, presente sensível e nossas projeções factíveis, imaginárias ou puramente delirantes.
Por que tantos tendem a reprimir a memória do amor depois que ele acaba ou se separa, sobretudo quando o desenlace se faz de forma conflituosa, ressentida, traiçoeira…? Talvez a explicação genérica para esse tipo de reação ou defesa do ego decorra da força poderosa com que o princípio do prazer atua no nosso psiquismo. Se lembrar o amor separado ou perdido é sempre doloroso, pior ainda é quando a memória vem sempre envenenada pelo ressentimento, o sentimento de rejeição, a hostilidade em face da traição ou engano tolerado além das medidas razoáveis. No entanto, nosso engano maior e mais danoso é supor que a memória sufocada resultará em libertação do amor perdido ou arruinado.
Por tanto importar, por tanto vincar de forma profunda nossa experiência afetiva, ele teima sempre em voltar, arrombar as portas que aferrolhamos, as janelas vedadas pelo ego ferido. Ele volta, por exemplo, como memória involuntária, fenômeno que ninguém traduziu melhor em palavras e imagens, em análise psicológica iluminada, do que Proust. Quem o leu, direta ou indiretamente, sabe muito bem o que significa memória involuntária. O exemplo mais conhecido, acenando brevemente para a sua obra, é o da madeleine imersa na xícara de chá. Há muitos outros estímulos que atuam sobre nossos sentidos acionando a memória involuntária: sons, palavras, a música, certas imagens, nossos modos múltiplos de percepção da realidade. De repente, no som de uma canção irrompe a memória do amor perdido, não raro encadeada a imagens irreprimíveis.
Que fazer de todas essas forças psíquicas, dessa memória involuntária, ou até voluntária, que conspira para que o amor perdido sobreviva, bata sempre e sempre à nossa porta encrespada pela dor da perda inconsolada? Não tenho lições para dar a ninguém, salvo a que procuro dar a mim próprio. Em que consiste? Numa atitude inoperante se apartada do que chamaria de memória generosa. Quero dizer, não tente sufocar o amor ido ou perdido. Até porque, como acima salientei, ele não se vai, ele não pode ser apagado, suprimido da nossa memória como suprimimos um pesadelo depois que acordamos e refazemos nossos elos mecânicos com a vida consciente. Portanto, a única saída é a reconciliação com a memória impotente para expulsar o amor perdido ou rejeitado que nela se aloja. E a reconciliação se faz com o acolhimento da memória que nos magoa e desejaríamos suprimir.
Se não há como esquecer o outro perdido, melhor reconciliar-se com ele, ir lenta e dolorosamente decantando a memória, abstraindo os bons e os maus bocados do vivido e compartilhado. Esse processo se realiza na medida em que somos capazes de acionar na memória sua dobra generosa. Dizendo isso de um modo menos impreciso, se o amor foi tão grande e profundo, e por isso não pode nem deve ser suprimido, importa então concentrar a memória voluntária em tudo isso que lhe conferiu beleza e prazer. Os maus bocados, fonte do nosso tormento e dor, irão gradualmente refluindo, deslocando-se para o fundo da memória, cedendo o passo à rememoração do que houve de melhor no amor. Até que um dia descobrimos que o amor perdido foi salvo do desastre sobrevivendo no que a memória retém de momentos de beleza, prazer, afinidades compartilhadas, imagens e momentos que no passado o fizeram tão belo e intenso. Por isso importa salvá-lo na memória decantada depois da separação, do luto simbólico, da perda que por fim acolhemos isentos de ódio e ressentimento. Se somos capazes disso, podemos nos reconciliar com o amor perdido, convertê-lo em amizade, em memória pacificada liberta da repressão como meio desastroso de lidar com o passado do amor.
Fernando nos brinda com um texto maduro e muito bem construído. Há algo de psicanalítico… Mas,sobretudo há muito de humanidade e bom senso. Por fim, e nisto não significa a menor crítica, percebo também um sentimento quase religioso, melhor dizendo cristão, no seu conteúdo. Muito bom e parabéns ao autor e a revista.
Meu querido Sérgio: Muito grato pela leitura. Você identifica na minha crônica algo de sentimento religioso e longe de mim negá-lo. Embora não adote nenhuma religião nem acredite em Deus, sou o primeiro a admitir que nossa história humana está impregnada de tradição religiosa. No caso brasileiro, e por extensão ocidental, a influência mais marcante é a cristã. Embora o pensamento dominante na modernidade seja radicalmente crítico dessa tradição e não raro professe o ateísmo, não é preciso escavar muito para encontrá-la presente em ideologias seculares supostamente ateias, como é o caso do comunismo. No mais, meu querido Sérgio, vale lembrar André Comte-Sponville, que escreveu um livro muito interessante sobre a espiritualidade dos ateus. Como dissociar essa forma de espiritualidade da tradição religiosa acima mencionada? Um abraço afetuoso para você, Sérgio.