RESENHA:
Jorge Ferreira, João Goulart: Uma Biografia
Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2011, 713 p.
“O homem fugiu!”
Eu era um menino; e a frase, dita em tom jubiloso, é uma das poucas lembranças vivas que guardo dos idos de março de 1964. Mas já era abril! Só não lembro se era o dia 2, quando Goulart deixou Brasília em direção a Porto Alegre, ou se já era o dia 4, quando partiu de sua fazenda em São Borja para “internar-se” (não sei por que ainda hoje se usa essa expressão) no Uruguai, onde se exilou e de onde só voltou doze anos depois, morto, para ser enterrado na mesma São Borja.
A notícia de sua partida foi dada pelo dono da padaria vizinha à farmácia do meu pai, que a recebeu com igual júbilo. Ambos comerciantes numa pequena cidade do interior de Sergipe, onde nasci e passei minha infância, faziam parte da classe média lacerdista apavorada com a ameaça do que então se chamava “república sindicalista”, suposto projeto de João Goulart e seu cunhado Leonel Brizola para o Brasil, onde, a exemplo do que Fidel Castro fizera em Cuba, segundo se dizia lá em casa, inquilinos passariam a ser proprietários das casas em que moravam – perspectiva que aterrorizava e revoltava meu pai, dono de algumas casas de aluguel… Nos dias que se seguiram, outro comerciante igualmente amigo do meu pai, um dos comunistas municipais do pequeno burgo onde vivia, escondeu-se para não ser preso. Começavam as perseguições e os primeiros passos de uma ditadura que depois iria se tornar feroz e durar vinte anos. À época, nem os próprios golpistas acreditavam que isso seria possível. O presidente deposto, também não.
João Belchior Marques Goulart foi o único presidente brasileiro a morrer no exílio. A história de como tudo isso se passou está contada com riqueza de detalhes na sua alentada biografia, candidata por enquanto a definitiva, assinada por Jorge Ferreira. Fruto de sua tese para professor titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, o trabalho, sem dúvida impressionante pela cuidadosa garimpagem e apaixonante pelo envolvimento que provoca no leitor, por vezes trai essa origem. Por exemplo, quando, num lance típico de trabalhos acadêmicos, insiste denodadamente em demarcar-se da literatura existente sobre o assunto, propondo uma reviravolta no tratamento até então dado ao seu objeto. Nesse afã demarcatório, o autor exagera a importância e o caráter negativo dos adjetivos a seu ver sempre “demeritórios” que a historiografia brasileira tem produzido sobre seu biografado: “inconseqüente”, “fraco”, “conciliador” etc., propondo-se a “dar início a uma reflexão, mais objetiva e menos passional, de seu papel na História do país”. Ora, o Jango muito humano que sai de suas páginas não chega a desmentir tais epítetos; ao contrário, de certa forma os corrobora, só que num registro positivo desta vez. Veja-se a questão da “inconseqüência” janguista.
A meu ver, essa não é uma avaliação descabível da trajetória do rico fazendeiro sinceramente disposto, apesar dessa origem, a quebrar a iníqua estrutura econômica brasileira através das chamadas “reformas de base” – nomeadamente a agrária. Jango nunca foi comunista, muito menos revolucionário, tendo mais de uma vez, no seu acidentado percurso, contornado um confronto do qual pudessem resultar mortes mediante uma postura de “conciliação”. Não obstante, no caminho que escolheu e face às terríveis forças que teria de enfrentar para injetar uma modernidade capitalista no campo brasileiro – esse era no fundo o seu projeto –, jogou perigosamente com o que a literatura revolucionária da época chamava de “forças em ascensão”, adotando a tática de mobilizar, para pressionar um Congresso Nacional escancaradamente reacionário, grupos políticos de esquerda que não escondiam a possibilidade, muitas vezes o desejo, de atropelar a Constituição e recorrer às armas se preciso fosse para tornar reais seus projetos. A tese da inconseqüência, que não repudio, deve-se ao fato de que Jango nunca esteve disposto a segui-los até o fim! (E olha que hoje, depois das “duras réplicas da história” à desastrosa experiência comunista, somos até tentados a dizer: felizmente…) Mas o fato é que, naqueles idos, com a revolução cubana próxima no tempo e no espaço, servindo de exemplo e inspiração aos que achavam que o assalto ao céu era possível, a tese da luta armada para construir o socialismo tinha seu charme e até sua legitimidade. Mas não para Jango.
Vinte anos de brutalidade do regime militar – que fizeram brotar em nós uma desconfiança da violência enquanto método político –, e mais vinte e cinco de convivência democrática em que, malgrado tudo, a perspectiva de uma ruptura constitucional sumiu do horizonte, relegaram a um esquecimento coletivo a violência – que em determinados episódios não foi apenas verbal – daqueles anos. Retomemos, só para dar um exemplo – mas muito significativo, porque foi ele que finalmente fez a maioria da oficialidade pender para o lado dos conspiradores –, a questão dos “subalternos” das forças armadas, sargentos e marinheiros, naqueles dias engajados numa luta de “libertação nacional” hoje inimaginável. Se há uma coisa que militar não suporta, é indisciplina e quebra da hierarquia. Pois bem: entre os dias 28 e 29 de março de 1964, como se a vida imitasse a arte, o Brasil assistiu a uma crise entre o ministro da marinha e marinheiros sublevados que praticamente repetia e epopéia de Encouraçado Potemkim de Einsenstein – filme que, numa reunião mandada dissolver pelo ministro, os marinheiros, aliás, tinham acabado de ver… As negociações que se seguiram selaram a sorte do regime: o ministro demitiu-se e os marinheiros se entregaram, mas no dia seguinte o novo ministro anistiou-os. Os libertos saíram pelas ruas do Rio desfilando palavras de ordem na frente do Ministério do Exército. Nos três dias que se seguiram, o Correio da Manhã – um dos mais importantes jornais da imprensa liberal brasileira que, poucos meses depois, já estava denunciando a violência contra presos políticos do novo regime –, saiu às bancas com três editoriais devastadores, num crescendo que simplesmente conclamava uma intervenção militar: “Chega!”, “Basta!” e “Fora!”. O último saiu já no dia 1º de abril, com as tropas do general Mourão Filho na estrada e Goulart já iniciando o périplo que o levaria ao exílio.
Entre uma coisa e outra ele teve a oportunidade de retomar o controle da situação, mas à custa de sangue ou, alternativamente, da traição aos esquerdistas que o apoiavam. Darcy Ribeiro, à época seu chefe de gabinete, chegou a propor: “se lamber a tropa de Mourão com rajadas de metralhadora, a tropa volta para o quartel”. Goulart: “Vai queimar gente? De jeito nenhum”. Em contato por telefone com o general Amaury Kruel, comandante do importante II Exército sediado em São Paulo e de quem chegava a ser compadre, Goulart foi instado a livrar-se dos comunistas do seu governo: era o preço da lealdade do general. Goulart respondeu que tinha compromissos políticos e que não podia livrar-se das forças populares que o apoiavam. Kruel respondeu que seus compromissos eram “contra o comunismo e em defesa do Exército”. E desligaram. Depois disso, não havia mais o que fazer, senão juntar-se a Brizola que organizava a resistência armada em Porto Alegre e partir para a guerra civil. Mas, já na capital gaúcha, Goulart aceitou e assumiu sua “fraqueza”: “a minha permanência no governo terá de ser à custa de derramamento de sangue. E eu não quero que o povo brasileiro pague esse tributo. Peço a vocês que desmobilizem que eu vou me retirar”. E foi para São Borja. Em Brasília, o senador Auro de Moura Andrade, num gesto afinal inconstitucional, porque o presidente ainda se achava em território brasileiro, adiantou-se à sua partida e declarou vaga a presidência da república. Mais tarde, no meio da madrugada, num palácio do Planalto praticamente deserto, ele e o ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal, empossaram Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, na presidência da república. Mal sabiam nossas mais altas autoridades civis que dessa vez os militares não iriam se resignar a voltar aos quartéis e entregar a cereja de mão beijada. Acho que “pequeno-burgueses” como meu pai e seu vizinho comerciante, também não.
João Goulart, mesmo tendo sido na sua cordialidade um brasileiro típico, terminou encenando um personagem de tragédia clássica. Lendo o livro de Ferreira, ocorreu-me pensar que o desfecho de sua vida pública repete o de outros personagens históricos que, para o bem ou para o mal, recusaram-se a seguir até o fim, pondo-se à sua frente, a lógica de um movimento irrefreável que puseram ou contribuíram para pôr em marcha. Pensando livremente, é o caso de um Danton, em 1794, ou mesmo, pensando mais livremente ainda, de um reformista como Kerenski em 1917, ultrapassado por um revolucionário como Lênin – que nunca teve receio de quebrar ovos se esse era o preço a pagar pela omelete… Tais são os homens de ferro. Jango, definitivamente, era feito de outro tipo de barro. Que a terra de São Borja lhe tenha sido leve!
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Luciano Oliveira
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Parabéns, Luciano. Que a história busque ser contada e recontada com fidelidade aos fatos, mas em linguagem simples e literária, como você costuma fazer. Gosto da forma pouco heróica da narração, mas, afinal, como diria Brecht, “infeliz do país que precisa de heróis”.