Teresa Sales

Cena do filme Tatuagem – Direção de  Hilton Lacerda.

Cena do filme Tatuagem – Direção de Hilton Lacerda.

16 de novembro de 2013

Aguardava com ansiedade o primeiro longa metragem de Hilton Lacerda, depois de acompanhar sua premiação em vários festivais de cinema nacionais. Após assistir ao filme, li a crítica. Nenhuma delas deu destaque à característica principal do filme, centrado numa espécie de teatro de revista. Foi bem merecida, portanto, uma das premiações para a trilha sonora do Dj Dolores.

Causou maior impacto na imprensa a cena de sexo explícito entre o líder do teatro de revista “Chão de Estrelas” e o soldado do quartel. Contudo, a trama amorosa entre Clécio Wanderley (Irandhir Santos), Paulete (Rodrigo Garcia e Fininha (Jesuita Barbosa) tem lugar no contexto dos ensaios e apresentações da trupe de “Chão de Estrelas”. A nudez, por outro lado, não tem o sentido da montagem de “Hair” (o nu como contestação), mas ilustra e acompanha as músicas no teatro. Muito embora a contestação esteja também presente em “Tatuagem”, pois não é por acaso que o filme é ambientado no Recife de 1978, em plena Ditadura Militar em nosso país.

O cinema brasileiro retratou o teatro de revista nas chanchadas do Estúdio Vera Cruz, ao tempo dos saudosos Oscarito, Grande Otelo, Dick Farney. Mas naquele cinema, o teatro de revista era apenas um dos componentes do filme. Ao contrário de “Tatuagem”, onde ele é o elemento central do qual parte o enredo, com histórias paralelas impactantes, como a do soldado Fininha.

A família católica e conservadora de valores rurais do soldado, faz um contraponto fantástico com sua trajetória no Recife, entre a rotina do quartel e o envolvimento progressivo com a trupe do teatro. Entre dois mundos tão opostos como a família e os atores do “Chão de Estrelas”, uma das cenas mais tocantes, por sutil, é a do rompimento do namoro do soldado com a namorada na beira de um riacho. Poucas palavras e um cenário bucólico disseram muita coisa que a continuidade do filme irá mostrar.

O enredo do filme envolve os três atores principais. Clécio, líder da trupe, que, ao se envolver amorosamente com o soldado Fininha, desperta uma reação ciumenta e agressiva de seu anterior relacionamento amoroso, Paulete. Como eles não apenas se apresentam no palco, mas vivem em comunidade, tal como os antigos hippies, o filme retrata questões humanas que em muito ultrapassam a trama principal e o sexo explícito. A liberdade, o amor, o sexo, o desejo o ciúme.

O trio amoroso abre campo para o filme colocar, sem discurso, mas com a própria vida, a questão da liberdade. Até onde ela pode ser vivida às últimas conseqüências, tal como na festa privada da trupe na casa onde moram, sem magoar a pessoa amada? Ou, em termos freudianos, qual o limite entre dar vazão aos desejos ou reprimi-los em favor do sentimento que mantém uma relação amorosa?

A crítica compara o filme com o grupo musical Dzi Croquettes, com a comunidade dos Novos Baianos, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa e mais: as apresentações e performances são um show à parte e revivem o tropicalismo. Só que, acrescento, por óbvio, Hilton Lacerda faz isso no cinema. A irreverência e bom humor, que tornam o filme por vezes comédia descontraída, é o que contribuiu para os paralelos.

A trajetória prévia do novo diretor como roteirista de filmes de conterrâneos – “Febre do Rato”, “Árido Movie” e “Amarelo Manga”, entre outros – não é de pouca importância para “Tatuagem”. De Árido Movie, um certo realismo que perpassa em paralelo ao teatro de revista. De Febre do Rato, um grito de contestação em meio ao conservadorismo estabelecido. De Amarelo Manga, uma das marcas fortes de Tatuagem: o colorido recifense.É o próprio Hilton Lacerda quem declara, numa das entrevistas à imprensa: “com este filme, queria trazer de volta o sol para o Recife”. As cores fortes, que também marcam os melhores filmes de Almodóvar. Nossa herança ibérica?

É promissora a carreira do roteirista que acaba de ascender a diretor. Os prêmios reconhecem também o valor dos principais atores. Os dois novatos, Jesuita Barbosa no papel do soldado Fininha e Rodrigo Garcia no papel de Paulete. A melhor, a meu juízo, é a atuação do conhecido Irandhir Santos. Há semelhança entre seu papel nesse filme e em “Febre do Rato”. Porém, na sua atuação em “O som ao redor”, igualmente marcante, ele assume um personagem inteiramente diverso.

Mais um filme, mais um diretor que se junta a Lírio Ferreira, Heitor Dhalia, Cláudio Assis, Kleber Mendonça, Renata Pinheiro, Guel Arraes, entre outros, para afirmar o cinema pernambucano.