Fernando da Mota Lima >
A semântica estuda o sentido das palavras, notadamente as modificações que sofrem ao longo do tempo. Adiantaria ainda, para os propósitos deste ensaio, que também estuda as relações entre a linguagem, o pensamento e o comportamento, além das formas como este é influenciado pelas palavras. Há quem considere problemas dessa natureza dentro de uma perspectiva estreitamente gramatical. Reduzindo a linguagem a uma codificação abstrata, dissociam-na da realidade viva da língua perdendo assim de vista e de consciência o fato de que a língua existe para representar a realidade.
É por isso que as pessoas podem chegar ao extremo de matar ou morrer por causa das palavras. No tempo das guerras religiosas, que banharam de sangue o solo de muitos países europeus, ser identificado como calvinista por um católico intolerante ou paranoico, e vice-versa, poderia significar morte certa. Na Alemanha nazista, o mero fato de ser judeu poderia significar condenação à morte, ou uma via crucis cujo fim seria o forno crematório. Logo, as palavras não são meras abstrações ou atividade anódina de gramáticos casmurros fiscalizando o uso impróprio da língua com o código em punho. Também a palmatória, fosse ainda este o tempo da palmatória.
Foi-se a palmatória, outros meios repressivos de socialização, e na casa de mãe Joana desregulada por toda sorte de costumes, sobretudo dos maus, a semântica fatalmente saiu pelas esquinas da vida rodando a bolsinha. Do dia para a noite, quando não na mesma página da vida saltitante entre parágrafos de vida pouco recomendável, palavras de sentido consolidado e contornos precisos mudaram completamente de roupa, quando não simplesmente se despiram. Uma delas, em particular, de sólida tradição no léxico da filosofia política e da economia, não obstante saturada de ambiguidade, saltou dos códigos assépticos manuseados nos círculos intelectuais para a cama dos bordéis. Aludo, noutras palavras, ao termo liberal.
O termo liberal encerra muitos significados, tantos que nem eles próprios, os liberais, se entendem. Se no contexto anglo-saxônico o liberal é identificado com alguém de esquerda, chegando no limite à adoção de políticas socialistas e libertárias, no contexto latino-americano esses sentidos se invertem ao ponto de o termo converter-se em insulto ideológico.
Mas os tempos mudaram e mais que eles os costumes. Nos sites pornô, tipo Garota Nacional, liberal é agora outra coisa. Será acaso o tipo da prostituta que em tempos remotos “topava tudo”? Peço perdão por me valer de termos tão pouco elegantes, mas compreendam que opino apenas como leigo. Confesso não saber precisamente o que seja, pois há muito deixei de frequentar esses ambientes de vida fácil. Embora não tenha competência para opinar sobre o assunto, duvido que vida de prostituta tenha sido em algum momento ou lugar essa vida fácil que a mentalidade moralista cunhou e inseriu na cadeia dos lugares comuns da língua e da moralidade pública.
É tão pouco fácil, diga-se, que não ousa dizer seu próprio nome. Pelos menos nos círculos da prostituição chique, das prostitutas que optam por entrar no fascinante mercado do consumo conspícuo pelo caminho mais curto e a porta mais larga. Como a profissão não é de todo recomendável, mesmo no reino da cultura da permissividade, as prostitutas já não são o que são ou eram. São agora modelo, acompanhante e até massagista, fato que com certeza tornou mais embaraçoso o exercício de uma profissão que, dentro dos seus limites convencionais, nunca foi da competência das garotas nacionais. Ponhamos também as estrangeiras. Trocando as linhas turvas nos termos da vida prática, se você é uma fisioterapeuta que também presta serviços de massagem em domicílio, pense duas vezes, preferivelmente três, antes de estampar na página de classificados um anúncio de massagista.
A velhice também não ficou imune às mutações que a revolução dos costumes impôs à semântica. Se a ambição maior dos publicitários – corruptores por excelência não apenas dos consumidores, mas também da língua – é vender ilusão torcendo e retorcendo as palavras ao gosto do freguês, por que não suprimir do horizonte linguístico esse terror da cultura narcisista: a velhice? Portanto, doravante fica abolida a velhice. Como entretanto é biologicamente impossível aboli-la, troquemo-la por um termo ou expressão palatável, por uma outra cadeia de sons que funciona como um sopro de transfiguração da realidade, isto é, a velhice passa a ser terceira idade. Os mais exaltados, confiantes na desmedida do nosso autoengano, vão ao extremo de trocar a terceira idade, que pode sugerir um fim próximo aos mais impressionáveis, pela boa idade. Como os marcos temporais dessas novas categorias etárias não são delimitados, fica ao gosto do freguês precisar quando começa a terceira idade ou a boa idade.
Já que o mundo anda mesmo de pernas para o ar, se é que há ainda quem tenha o pudor de não mostrar por aí o que ficava sempre encoberto por calças e vestidos, alguns dos termos que aqui aprecio acabam contaminando um ao outro. É o caso da cadeia lógica que associa termos como criança, adolescente, jovem, adulto, maduro, velho ou idoso. A invenção de neologismos como terceira idade e boa idade, como acima observei, borra as fronteiras temporais, quando não transborda ao capricho do interesse, da conveniência e até da inconveniência. Um idoso inconveniente, por exemplo, pode sem mais assediar uma gatinha, ou gatinho, confiante de que tem ainda idade e sobretudo permissividade para fazer o que noutros tempos seria intolerável. Os tempos sempre mudaram, volto a chover no molhado, mas agora os costumes chovem mais forte e assim obrigam a semântica a nadar como náufrago de tsunami. A semântica nada cada vez mais e o usuário criterioso da língua paga a conta, a taxa de juros e as sucessivas edições corrigidas dos dicionários.
A coisa piora ainda mais, se isso é ainda possível, se saltamos do bordel dos costumes para a babel da política e da publicidade. Como o capitalismo, sobretudo o de timbre brasileiro, vende tudo, inclusive a mãe, para vender segurança, não raro insegurança, o publicitário espreme a semântica para dela extrair sentidos domesticadores escolando o usuário para a servidão. Nossa privacidade é agora filmada, rastreada, dissecada e estripada em todo o espaço social – do elevador ao vaso sanitário; da invasão dos que lutam para preservar sua liberdade à evasão dos que a esta renunciaram; da praça, que já foi do povo, à Internet. Tudo isso é tecnologicamente executado, monitorado e arquivado para em último caso ser usado como instrumento de violação da liberdade individual a pretexto de servir à nossa segurança, nosso narcisismo, nosso bem-estar, nossa felicidade e à mais alta glória de Deus, que evidentemente é fiel. Confesso não compreender bem o sentido desse slogan, mas suponho tratar-se de mercadoria dotada de extraordinária potência metafísica.
Não obstante a discrição com que procuro viver minhas rotinas alheias à corrente ruidosa e até histérica da vida pública, sou controlado, fiscalizado, monitorado, taxado e intimidado numa sucessão de situações sociais que pouco diferem do inferno totalitário de Winston Smith, o protagonista do Big Brother. Conviria lembrar aos escravos do programa de TV homônimo que aludo ao romance de George Orwell, isto é, à obra original, libelo devastador contra o totalitarismo contemporâneo que acabou apropriado, ironia das ironias, pela cultura de massas da democracia em que vivemos. Como nunca assisti a um minuto desse fenômeno espantoso, não teria como sobre ele opinar baseado em evidências empíricas. Já que todavia não preciso beber o mar para saber que ele é salgado, sei desse programa o suficiente para afirmar que simboliza, entre outras coisas igualmente nefastas, uma das evidências exemplares da nossa servidão aos poderes do mundo.
Odeio o servilismo inconsciente e passivo que se escuda na racionalização autocomplacente isentando-se assim de qualquer responsabilidade pela defesa da liberdade individual. Trocando isso em miúdos, quero dizer que todo ser humano, não importando a quanto desça na privação da sua liberdade, dispõe ainda de uma liberdade última e inalienável: a de preservar sua vida e dignidade ao preço de perder a própria vida, pois desta nenhum poder ou controle é proprietário. Trocando isso em miúdos mais práticos e amenos, nenhum poder me impõe o Big Brother e congêneres como instrumento de controle ou supressão da minha liberdade. Se dela no caso me privo, é simplesmente porque consinto em perdê-la, porque a defesa da minha liberdade individual é um peso que não tenho a integridade e a energia de suportar. Por isso docilmente me rendo aos poderes do mundo. Sei que eles são poderosos, o truísmo intencional vai apenas com o propósito de enfatizar que com o poder ninguém brinca, mas também sei que não são absolutos. Portanto, mesmo dentro de uma ordem totalitária resta-nos um grão de liberdade, uma franja de vida liberta dos poderes do mundo que nos oprimem.
Deixando de lado a questão semântica e adentrando pela vida prática, esta imposição midiática que suprime o direito a contemplar os anos vividos, e a legislação regulatória do Estado, que lhe classifica de “idoso”, as pessoas estão perdendo o direito à velhice. Não só à cadeira de balanço e aos cabelos brancos. A estética obriga a reformular o corpo, com plásticas, implantes, etc. Além do mais, se o cidadão está na “melhor idade”, tem que ser feliz, estar sempre disposto à balada, à viagem, ao lazer compulsório e compulsivo.E o Big Brother controlando… Coisa mais chata…