Brasil império

Brasil império

Há livros que nos encantam logo de cara. Na literatura em geral, um bom romance nos prende nas primeiras linhas, que sugerem bem o que encontraremos mais à frente.

Nos livros de sociologia, ciência política e antropologia não acontece assim com facilidade. Eles carregam consigo cacoetes técnicos, conceitos estranhos à linguagem comum e são, na maioria, herméticos e repletos de digressões. O leitor precisa “sofrer” junto com o livro, como se estivesse a atravessar uma cerca de espinhos, para então ir decifrando argumentos e intenções.

Não quero exagerar nessa constatação, que é bastante pessoal. Há livros e livros, em qualquer área que se queira.

Faço essa pequena consideração inicial para me referir ao livro recém-publicado do filósofo e cientista político Rubem Barboza Filho, professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e um instigante analista da história brasileira e latino-americana. Rubem é autor de um livro de referência: Tradição e artifício. Iberismo e barroco na formação americana, publicado em 2000 e reeditado há poucas semanas, junto com o lançamento de mais um importante livro. Ambos publicados com o selo do Ateliê de Humanidades.

O novo livro já nos captura pelo título. Chama-se Sinfonia barroca: o Brasil que o povo inventou. É um título repleto de significados e promessas. Uma sinfonia, e ainda por cima barroca? Há uma sinalização ali. Sinfonia é uma obra complexa, regra geral orquestrada, ou seja, executada coletivamente. E o barroco, além de movimento artístico, é um modo de estar no mundo, abarcá-lo e experimentá-lo, valendo-se de certo exagero, contrastes marcantes e grande expressividade. Ele chegou ao Brasil no segundo século da colonização, trazido basicamente pelos jesuítas. Modelou boa parte da experiência social que marcou nossa história, legando-nos uma motivação permanente para construir coisas e relações repletas de nuances, de uma abertura para o divino e o espetacular, bem como para a prevalência do emocional, da dramaticidade, da paixão.

Pois bem, Rubem Barboza argumenta que essa forma cultural contagiou a rala população de indígenas, africanos, estrangeiros e mestiços que ocupou o território de então e conseguiu forjar uma sociedade dinâmica e aberta, que plasmou um modo de ser e viver a vida com muitas inflexões regionais e muitas modalidades de organização social. O livro, por isso mesmo, sustenta que, em nossos primeiros três séculos, surgiram diversas “socialidades”, não propriamente uma sociedade estruturada. Elas foram, no então, suficientes para dar curso a uma economia produtiva, que atingiu o auge no final do século XVIII.

O povo, portanto, com sua criatividade e capacidade de improvisação, de resiliência e alegria, inventou o Brasil. E fez isso sem ter grandes sustentáculos. Não havia um poder central, nem instituições que produzissem coesão ou “disciplina”. Seu principal instrumento foi a criação de uma língua nativa, o português brasileiro, com sua malemolência, sua sonoridade típica e sua força expressiva. Inventou uma língua sem dispor de escolas ou sistemas educacionais. Uma língua mestiça, como o povo. Que usa e abusa do corpo, fazendo dele um selo de identidade.

É um argumento que desafia nosso imaginário e nosso pensamento social.

Rubem Barboza explora com entusiasmo, energia e competência esse argumento. Para mostrar que não podemos ser indiferentes à nossa história e devemos recuperar o que ela teve de “virtuoso”, que nos fez ser o que somos.

É preciso, portanto, avaliar com rigor o “peso do passado”, em vez de vê-lo como uma maldição ou um obstáculo a impedir o progresso social e econômico. Nasceu no passado brasileiro, por exemplo, o que há de mais típico e original em nossa sociedade e em nossa cultura.

No imaginário brasileiro, fomos nos acostumando a selecionar aspectos particularmente nefastos de nossa história – a escravidão, as ditaduras, as desigualdades reproduzidas ao longo do tempo – para então concluir que estamos avançando com bolas de chumbo presas nos pés, levando-nos a buscar modelos externos (países europeus ou os EUA) para nos inspirar. Com isso, deixamos de lado o que houve de virtuoso antes e não conseguimos entender como foi que chegamos até aqui.

Como devemos então tratar nosso passado? Quanto ele está presente entre nós? O que há nele que precisamos resgatar e compreender melhor?

Sinfonia Barroca nos guia pela história brasileira até os dias atuais. Mostra que, a partir do século XIX, o povo que se fez sozinho passou a enfrentar diversos obstáculos. O Brasil Império, criado com a Independência, incrementou a escravidão, nada fez para dar vazão às virtudes do povo existente, travou o progresso social e econômico. Impossibilitando o surgimento de uma sociedade mais equilibrada e igualitária. A situação não mudou muito com a República, ao menos até 1930. Com Vargas e sua ditadura, um Estado-Nação ganhou forma e um povo foi convocado para dar vertebração a ele: um povo de trabalhadores urbanos, antes de tudo, esteio da industrialização. Os trabalhadores rurais foram deixados de lado.

As “reformas de base” foram tentadas nos anos posteriores a 1950, impulsionadas por trabalhistas, comunistas, sindicatos e uma emergente “sociedade civil”. Mas veio 1964, o golpe militar inviabilizou o reformismo “por baixo” e instalou um regime que fez com que, durante 20 anos, tudo desandasse. A partir dali, patrocinou-se uma modernização autoritária e excludente, que nos legou um País descompensado e reprimido socialmente. Isso foi feito em nome de uma “Nação” sem povo e sem democracia. Como afirma Rubem Barboza, o período ditatorial fixou uma “distopia fantasiada de Brasil Potência”, uma longa “modernização demofóbica”.

Não tenho como entrar em detalhes sobre os diversos capítulos do livro. Quero somente apontar como ele chega aos dias atuais.

O roteiro parte do resgate analítico dos esforços e trajetórias de combate à ditadura. Após o “desatino da luta armada”, a redemocratização seguiu as pegadas do MDB e da frente que em torno dele se aglutinou. Depois surgiram, como desdobramento, as postulações do PT e do PSDB. A oportunidade de ampliação da frente democrática se abriu. Mas a redemocratização seguiu outro caminho e assistiu progressivamente ao embate autofágico entre essas correntes. Aos poucos elas foram se destruindo reciprocamente. Perderam o viço ao longo do tempo e entraram no século XXI com poucas condições de liderar um bloco de forças capaz de projetar o País para frente de modo democrático e socialmente justo. Deixaram de cooperar, foram sendo confundidas pelas mudanças globais, pelo capitalismo tecnológico que se configurou mundialmente.

Daí que chegamos aos anos 2020 com dificuldades para assimilar nossa evolução histórica. Ao longo de tantos desencontros, divisões e desigualdades, nos tornamos um País sem uma rota clara para o futuro. Estamos imersos em uma mudança de época no mundo, impulsionada basicamente pela revolução tecnológica, pelos avanços da digitalização e por uma globalização capitalista incompleta, dramaticamente financeirizada. Hoje, o clima é de catatonia coletiva, com o povo sem saber reconhecer suas virtudes e sendo tratado como recurso eleitoral, como “alguém” a ser cuidado, sem nada mais em termos de autonomia e participação. O Brasil também não sabe seu lugar no mundo. Parece um transatlântico sem um piloto com clareza de visão.

Claro, o problema não é somente do Brasil. Rubem Barboza discorre bastante sobre a crise institucional da modernidade, que perdeu propulsão e levou a uma crise da ideia de futuro, o que nos despoja de utopias. Há um “presenteísmo” por toda parte, que deseja ficar “fora da história” e do tempo. Olha para trás, não para frente. O momento parece tomado pelos “regimes de eternidade”, bela expressão que se apresenta em Sinfonia Barroca, para salientar uma inclinação, típica dos populismos de extrema direita, dedicada a buscar num passado mitificado a base para que os líderes (Trump, Putin, Modi, Xi-JinPing, Bolsonaro, Milei) se atribuam uma missão redentora.

No caso brasileiro, o jogo político está podre. Os partidos são moscas mortas, sem vitalidade. Não há uma elite política, ou de qualquer outra natureza. Rubem Barboza fala que estamos em um “estado de ridículo”, no qual a democracia se fragiliza. E faz uma sugestão bastante original e provocativa, ao dizer que nossa chance depende da capacidade que tivermos de executar uma “sinfonia barroco-pragmática”, com a qual poderíamos enlaçar o passado, o presente e o futuro como uma história efetiva de emancipação e travar uma batalha épica contra o “despedaçamento do mundo” que envenena as pessoas com a raiva, o ódio, o ressentimento e a desconfiança, levando-as a abraçar postulações desfocadas e autoritárias, em busca de lideranças “salvadoras” ou instituições redentores (as FA, o STF).

Sinfonia Barroca não oferece soluções pontuais ou propostas programáticas. Sua intenção, na qual se encaixa o poder que tem de nos encantar, é outra: ele deseja nos convidar para abrir a cabeça, alargar a imaginação e fazer chegar ao espaço público ideias novas, voltadas para a democracia, o diálogo plural e o reconhecimento do valor do povo mestiço e criativo como agente capaz de nos levar para frente.

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Assista ao Programa Diálogos com Marco Aurélio Nogueira do IEPfD, no qual entrevista autor do livro, Rubem Barboza Filho. Clique no link abaixo.

https://www.youtube.com/live/7fSyOxJJf2s?si=cwjy0_ok_1Q_vjM-