Que falta nos fazem os suplementos literários dos jornais da segunda metade do século passado! Dominicais, quinzenais ou mensais, eles constituíam o espaço ideal para a revelação de novos talentos na poesia e no conto, mas sobretudo para o trabalho crítico de ensaístas, analisando e debatendo livros e ideias. Foi assim que o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil divulgou trabalhos dos então jovens Cacá Diegues e José Guilherme Merquior, e da turma do Concretismo, capitaneada pelo grande pensador que é Ferreira Gullar. Foi assim também que, para grande honra minha, o “Folhetim”, da Folha de São Paulo, acolheu meu ensaio sobre Ariano Suassuna, depois inserido em livro, editado pela FUNDARPE. Tem sido assim, excepcionalmente até hoje – por se tratar do suplemento de um jornal de propriedade do Estado da Paraíba – que o “Correio das Artes”, morto e ressuscitado várias vezes, abrigou toda a produção inicial do movimento literário “Geração 59” e, mais recentemente, abre espaço para trabalhos críticos, do melhor nível, da intelectualidade da minha terra. Seu momento de glória e maior popularidade deu-se ao ganhar um prêmio nacional e ser exibido e louvado por Clodovil, em seu programa de televisão.
Agora, quando não temos mais no Recife as páginas em que brilharam Gláucio Veiga, Mauro Mota, Carlos Pena, César Leal, os poetas da “Geração 65” e tantos outros, e só dispomos do espaço cada vez mais exíguo das seções de “Opinião” dos nossos grandes jornais, lamento profundamente que um livro como “MCP – História do Movimento de Cultura Popular”, de Germano Coelho, tenha passado sem a devida repercussão na mídia impressa. Pois ele está a merecer não apenas justos louvores, mas também novos depoimentos dos que viveram aquela extraordinária experiência, complementações e glosas.
Nunca estive ligado ao MCP, mas o acompanhei de perto: esposa, irmão, cunhada, amigos, companheiros de Partido estavam por lá. No primeiro momento, eu militava na UNE, como um dos vice-presidentes da gestão Aldo Arantes (1961-62), na qual foi lançado o projeto do CPC (Centro Popular de Cultura). Um ano depois, já “doutor”, entrei na SUDENE, outra trincheira de modernidade e desenvolvimento. Só conversei com Germano uma vez, quando, a pedido do presidente da União Estadual dos Estudantes da Paraíba (UEEP), Amilton Gomes, fui colher informações para fundamentar nosso pleito ao Secretário de Educação da Paraíba pela criação, em nosso Estado, de entidade semelhante – que acabou se materializando na CEPLAR. Mas posso dar testemunho da profunda admiração que os estudantes, secundaristas e universitários, comunistas e cristãos, atraídos para o MCP, sentiam por ele, e do seu extraordinário poder de liderança e mobilização.
A frente única JUC – PCB
A união, naquele momento, entre jovens idealistas de convicções político-ideológicas tão distintas, que foi a grande força do MCP ressaltada por Germano, não chega a surpreender. Nós, da era pós-estalinista, estávamos abertos à composição com quem compartilhasse da nossa luta anti-imperialista e antifeudal. E até os grandes líderes da “velha guarda”, no plano internacional – Palmiro Togliatti, na Itália, Maurice Thorez, na França, Santiago Carrillo, na Espanha – já haviam estendido a mão para os que, mesmo erguendo o estandarte da cruz, e não o da foice e do martelo, quisessem marchar conosco. Da parte dos católicos, e nas palavras de um dos seus líderes, eles se dispunham a fazer conosco “a jornada da construção temporal”, como foi reportado no livro “Do Anátema ao Diálogo”, importante documento da época, do pensador marxista Roger Garaudy.
Nesse contexto, tínhamos também na UNE uma política de “frente única” com a JUC (Juventude Universitária Católica), inaugurada desde quando Betinho (Herbert José de Souza), em 1960, renunciou à sua candidatura à presidência, para viabilizar a unidade em torno de Oliveiros Guanais. Essa linha foi mantida na gestão Aldo Arantes, em que, numa diretoria de dez membros, éramos cinco do PCB e dois da JUC, um deles o presidente, tendo Betinho como seu conselheiro. Como recomendava o Givaldo Siqueira, da cúpula do PCB e nosso “assistente”, devíamos cuidar daquela aliança como a “menina dos nossos olhos”.
A “revolução branca”
Da força transformadora do MCP, do alto sentido de promoção social das suas atividades, Germano diz muito bem, deixando transparecer, no texto do livro, o mesmo entusiasmo que revelava em suas falas aos jovens. Era um trabalho em extensão e profundidade, envolvendo alfabetização (de crianças e adultos), conscientização, civismo e valorização da cultura popular, em todas as suas manifestações: música, dança, representações teatrais. A ideia era transformar massas ignorantes, alienadas, e, em tal condição, exploradas, em cidadãos brasileiros conscientes dos seus direitos e deveres.
Em pouco tempo, essa transformação já se fazia perceber, com um crescente acolhimento popular e o apoio deslumbrado da intelectualidade. Só mesmo as cabeças mais reacionárias, preconceituosas e maniqueístas a viam com desconfiança, ou a ela se opunham.
Até onde essa verdadeira “revolução branca” nos levaria? Jamais o saberemos: a experiência foi interrompida pela truculência do movimento militar de 1964.
Três ressalvas
No entanto, como antecipamos, não estamos aqui apenas para elogiar. Não seria gesto à altura do autor do livro, que disso já não precisa. Quero também suscitar três temas de debate, a serem considerados.
O primeiro refere-se ao rompimento do teatrólogo Hermilo Borba Filho com o MCP, levado ao extremo da concepção e “mise em scène” de uma peça contra o movimento e a sua linha de união entre católicos e comunistas: “A Bomba da Paz”. Tratando-se de intelectual sério e respeitado como Hermilo, o que o teria levado a atitude tão radical? Germano faz referência ao episódio, mas caberia uma análise mais profunda. E se houve depois alguma revisão de posições, é importante conhecê-la bem, para enriquecimento da memória do renomado escritor. De tais revisões, comuns entre intelectuais, não há exemplo mais nobre que o de Ariano Suassuna, outro dos notáveis fundadores do MCP, que dele também se afastou, discretamente.
O segundo tema é a coexistência e a relação entre o MCP e o CPC da UNE. O livro registra apenas uma apresentação do MCP no congresso da UNE, então sob a presidência de José Serra, que teria resultado na criação de CPCs em todos os Estados brasileiros.
Na verdade, o CPC já existia desde, pelo menos, dois anos antes, como já foi aqui referido, só que com sede apenas no Rio, e atuação focada em teatro, cinema, música, artes em geral. Não havia estrutura nem efetivo para lidar com alfabetização. No ano de 1962, a equipe de teatro do CPC viajou por todo o Brasil, na caravana da “UNE Volante”, encenando peças como “O Formiguinho”, “Brasil, Versão Brasileira”, “Auto dos 99%”, todas de forte mensagem político-social. Seus autores e atores: Carlos Estevam, Arnaldo Jabor, Oduvaldo Viana Filho, Flávio Migliaccio, Cecil Thiré, Joel Barcelos e outros. Além disso, produziu o filme “Cinco Vezes Favela”, com episódios dirigidos por Joaquim Pedro, Cacá Diegues, Leon Hirszman, e lançou o disco compacto “O Povo Canta”, com a sempre lembrada “Canção do Subdesenvolvido” e outras modinhas de protesto, como “João da Silva”, “Trilhãozinho” e “Zé da Silva”.
A proposta do CPC era mais radical, mais visionária, talvez. Enquanto o MCP assumia “preparar o povo para a vida”, o CPC se propunha a “preparar o povo para a revolução”. Não testemunhei o encontro no Rio, em 1963, de que fala Germano, nem tive notícia do seu desdobramento, mas quero crer que, a partir de então, o CPC abraçou a causa do MCP, e projetou engajar-se também na alfabetização, criando núcleos nos Estados. Só que não teve tempo para isso.
Finalmente, como terceiro tema de debate, em tributo aos velhos companheiros do PCB, hoje dispersos, desaparecidos, “aposentados” ou ainda militantes, afirmo que sua participação no Movimento ficou a merecer um maior destaque. Porque ninguém mergulhou mais a fundo no ideário e nas ações do MCP do que a juventude comunista da época, tanto em termos de valores individuais quanto em número de colaboradores. O gesto emblemático desse engajamento, como reporta o próprio Germano, foi a encenação do Auto de Natal, em que José e Maria eram representados por jovens comunistas.
Na verdade, toda a equipe de teatro do MCP era do “Partidão”. E assim também a maior parte dos monitores das escolas radiofônicas e da equipe de alfabetização que se deslocou para o interior do Estado. Ao seu empenho deve ser creditado o sucesso do sistema de alfabetização Paulo Freire, não equiparado em nenhum outro lugar do mundo. Além dos que constam da lista de fundadores, e dos que são citados por Germano, estou certo de que, à simples memória do MCP, ainda palpitam os corações de Fernando Barbosa, Liana Aureliano, Teca Calasans, José Wilker, Nelson Xavier, David Hulak, Elayne Soares, Ausany de França (Zanita), Chaguinhas, Nelson, Elivan e Lúcia Rosas Ribeiro, e tentos outros que me perdoarão por não lembrá-los neste momento.
E agora?
“Le Passé m’a révélé la construction de l’Avenir”. A frase do Padre Teilhard de Chardin é uma das epígrafes do livro de Germano Coelho. Mas que lições podemos tirar da experiência interrompida, que nos permitam definir linhas de ação para o futuro? A realidade que se nos apresenta hoje pouco tem a ver com aquela que o MCP enfrentou, há mais de cinquenta anos. E como afirmou Chico Oliveira, em um dos debates por ocasião do “relançamento” da SUDENE, não devemos insistir agora com um projeto que não vingou, mas encarar o “não-projeto” que nos foi imposto. É certo que algumas sementes “dormiram” todo esse tempo em terreno sáfaro, e brotaram ao final da longa estiagem, como no caso dos Centros de Integração Empresa-Escola CIEEs), de que fala Germano. Mas são germinações pontuais, não integradas, sem a profundidade, a abrangência e as ambições da floração dos anos sessenta.
Que quadro social e econômico se nos apresenta hoje? O analfabetismo está quase eliminado, e as condições de alimentação, habitação e saúde das massas urbanas melhoraram muito. O conforto edulcorado e anestesiante da televisão já chega a quase todos os lares. Em compensação, a insegurança, a violência, as drogas e o individualismo explodem. Ao tempo do MCP, as lideranças e as pessoas humildes dos morros e alagados cediam as salas de seus clubes, de seus locais de culto e lazer, para abrigar as escolas de adultos e crianças. Agora, grupos de marginais e vândalos saqueiam ou depredam essas escolas. As associações de bairros, não raro, estão envolvidas com a criminalidade.
Se olharmos para os estudantes e a classe média, o quadro é ainda mais sombrio. A UNE, distante de sua base, é pouco mais que um pequeno feudo partidário. Os garotos dissipam a sua energia nas “baladas”, sem nenhuma gota daquele sentimento cívico que levava os jovens da minha geração, desde os quinze anos, a ligar-se a grêmios patrióticos, movimentos sociais ou organizações clandestinas. A quem mobilizar, portanto, para uma missão tão digna e absorvente como a do MCP? E quais as novas bandeiras?
Já não podemos encontrar inspiração no exterior, como fez Germano com o movimento francês “Peuple et Culture”. Mergulhada em profunda crise econômica, e convivendo com um desemprego crescente e vastas populações de imigrantes social e culturalmente marginalizadas, a Europa já não tem o que nos ensinar. Por outro lado, com a dissolução da União Soviética e a exposição das chagas do “socialismo real”, o sonho de uma sociedade alternativa, próspera, igualitária e solidária, que embalou tantos de nós, se desvaneceu. E entre os nossos partidos sem nitidez ideológica, aquele no qual se acreditava, como representante dos homens que, segundo o belo texto de Eça de Queiroz reproduzido no livro, nos alimentam, vestem, servem e enriquecem, aquele partido, no afã de conquistar o poder e nele ficar a qualquer preço – com todo o respeito aos meus amigos que ainda lá permanecem – descaracterizou-se e corrompeu-se de tal forma que dele já não se pode esperar nada.
Só nos resta, portanto, retomar alguns temas – e lemas – simplórios e antigos, talvez, mas inquestionáveis no mérito e na amplitude: anti-violência, consciência ecológica, ética na política, eficiência e sobriedade na administração pública, tratamento equânime para ricos e pobres. E desejar que surjam novos Germanos, para nos mobilizar em torno de causas que façam a vida valer a pena.
Clemente Rosas é um jovem de setenta anos. Pensa com o ardor da juventude. Vestida com a experiência dos vividos. Reclama ação, pede idealismo. Penso que retomar temas, como ele sugere, é essencial. Resgatando o passado para construir o futuro, na linha de Chardin. E já há espaço pra tanto. É este aqui. Clemente é o mais socialmente escritor dos economistas, que eu conheço.
Amigo Luiz Otávio, agradeço o retorno. Somos dois combatentes obstinados por causas que achamos justas, tenho conferido a sua presença no Jornal do Commercio.
Que não nos falte o fôlego.
Como Clemente Rosas escreve bem !
Querida Cristina, estas quatro generosas palavras, partidas de quem não vejo há quase meio século, e que, nesse tempo, se fez ficcionista de renome, é mais do que poderia esperar. Grato pelo estímulo!
Quanta emoção ao ler no jornal A Saga do MCP ! Dei um mergulho no passado e me vi na sala de aula, cercada por meus alunos de mãos calejadas, olhos e ouvidos atentos, com os corações e mentes cheios
de vontade e esperança…
Ainda hoje escuto o riso solto e banguelo de Sr Bizé,com seus 63 anos, soletrando: en-xa-da , ma-ta, ma-ca-xei-ra . Como me fazia feliz aquela alegria , pois sabia que ele já estava quase lendo !
Obrigada Clemente Rosas, por me tirar de um presente nem tanto e me jogar num passado que , para mim, era tudo. Tudo de Bom.
Obrigado a você, Nadir. Esse comovido retorno já me recompensa e gratifica.
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