Fernando da Mota Lima >

Darcy Ribeiro é um dos últimos grandes intérpretes da cultura Brasileira. Depois de sua morte, em 1997, restou apenas Roberto da Matta, curiosamente omitido da mais recente coletânea de textos consagrada aos intérpretes do Brasil. Refiro-me à obra Um enigma chamado Brasil, organizada por André Botelho e Lillia Schwarcz. A omissão de da Matta é ainda mais estranha se consideramos que nela figuram nomes bem menos conhecidos e influentes, além de outros pouco característicos dessa tradição que tenho contemplado numa série de artigos sobre a cultura brasileira.

A obra de Darcy Ribeiro é marcada de ponta a ponta pelo espírito de participação apaixonada. Intelectual declaradamente militante, Darcy escreveu sempre movido pelo desejo de ação. Sua luta em defesa do povo brasileiro, notadamente as camadas mais impiedosamente oprimidas, imprimiu à sua biografia tons de grandes feitos românticos, uma vontade de mudança revolucionária que lhe custou exílio político e muita instabilidade, incerteza e derrota. Sendo no entanto um otimista incorrigível, manteve-se fiel à sua convicção de que desse Brasil tão surpreendente, de tão complicada organização e explicação teórica, brotaria uma nova Roma, como dizia, lavada em sangue negro e índio. Esses rompantes nacionalistas em meio a uma obra de análise de natureza científica levam o autor a extremos confinantes com uma visão cultural ufanista. Isso é patente no tom com que louva nossa miscigenação e sensualidade.

Darcy Ribeiro foi militante do Partido Comunista nos anos 1940. Nessa mesma década especializou-se em etnologia na Escola Livre de Sociologia e Política, de São Paulo, onde foi colega de Florestan Fernandes, que se tornou o grande nome da escola de sociologia paulista. Inspirado pelas lições de Herbert Baldus, um dos professores estrangeiros contratados pela Escola Livre de Sociologia e Política, dedicou-se apaixonadamente ao estudo das culturas indígenas e viveu durante cerca de dez anos entre os índios. Isso explica o lugar de relevo que nossa matriz indígena ocupa na sua obra e em particular em O Povo Brasileiro.

Darcy Ribeiro também se destacou por sua luta tenaz em defesa da educação. Discípulo e amigo fiel de Anísio Teixeira, um dos líderes do Movimento da Escola Nova, lutou até o fim pela institucionalização da escola pública de qualidade segundo o modelo das melhores políticas de educação pública. Além de ser um dos criadores da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Norte Fluminense, atuou de forma combativa na esfera universitária e política em vários países latino-americanos durante seus anos de exílio político. O exílio lhe foi imposto pelos militares devido ao papel chave que desempenhou no governo deposto de João Goulart – era Ministro da Casa Civil – além de sua tentativa de organizar uma resistência armada ao golpe militar de 1964. Os militares permitiram que retornasse ao Brasil antes da anistia política por estar sofrendo de um câncer no pulmão que, esperava-se, logo o mataria. O fato, porém, é que o tenaz e incorrigível otimista sobreviveu até 1997. Estava internado na UTI quando fugiu para  refugiar-se na casa que tinha à beira de uma praia. Lá conseguiu dar forma definitiva a seu livro O Povo Brasileiro, obsessão da sua vida. O livro foi publicado em 1995.

Esta obra, que perseguiu a imaginação criadora de Darcy Ribeiro durante mais de 30 anos, como ele mesmo frisa no prefácio, é uma ambiciosa tentativa de aplicar à formação sociocultural do Brasil a teoria geral que ele elaborou durante muito tempo. Dela resultaram obras como O Processo Civilizatório, sua teoria mais abrangente, As Américas e a Civilização, restrita à antropologia das Américas, Os Brasileiros: teoria do Brasil, e por fim O Povo Brasileiro. Retrocedendo às nossas origens, como de resto procederam todos os explicadores do Brasil, Darcy Ribeiro parte das três matrizes formadoras da nossa cultura que, através de complexos processos de encontro, conflito e caldeamento compuseram as linhas fundamentais da nossa formação. Darcy Ribeiro louva o caráter híbrido da nossa cultura – não raro em tom que beira o ufanismo, como acima sublinhei -,  sua sensualidade e alegria de viver, pontos nos quais muito se aproxima de Gilberto Freyre, mas também ressalta com igual intensidade os processos de conflito e espoliação que marcam o conjunto da nossa formação social.

Começando pela cultura indígena, o autor deixa evidentes os vínculos profundos que o prendem a essa matriz da nossa formação. Ela foi decisiva, entre outras coisas, por ser portadora de uma rica experiência antropológica de enraizamento no trópico, na imensidão das matas e florestas, onde os indígenas desenvolveram formas de cultura ajustadas ao ambiente. O colonizador português soube aliás astutamente assimilar no convívio com o indígena os meios técnicos e culturais necessários para adaptar-se como europeu às condições impostas pelo ambiente novo. Além de domesticar muitas plantas  selvagens que transformou em meios fundamentais de nutrição, como o milho e a mandioca, o índio desenvolveu no trópico uma cultura própria e autônoma. Somente a visão etnocêntrica do colonizador poderia negar a esses grupos humanos uma riqueza de vida espiritual que é profundamente diferente da europeia, ou civilizada em geral, mas igualmente significativa do ponto de vista antropológico.

O contato das culturas indígenas com o colonizador europeu resultou desastroso para sua sobrevivência. Além de lhes impor formas brutais de deculturação, termo que copio do livro de Darcy Ribeiro, de repressão ou supressão  da sua cultura, como foi patente no caso da catequização imposta pelos jesuítas, essas culturas foram submetidas a um verdadeiro etnocídio provocado por doenças trazidas pelo europeu, estranhas ao meio tropical, que dizimaram muitas tribos. Havia naturalmente um conflito insolúvel entre essas culturas, bem  próximas da natureza e regidas por valores culturais incompatíveis com os do colonizador, e o projeto mercantil do português, que buscava no trópico apenas a riqueza fácil, as pedras preciosas, a natureza traduzível em lucro e acumulação. Foi também por essa razão que o português tentou sem sucesso escravizar o índio. Este importava para aquele, antes de tudo, como fonte de exploração econômica. Diante da impossibilidade de ajustá-lo à máquina de produção mercantil, o colonizador adotou por fim a política de escravização do negro.

O fim do parágrafo acima explica de modo sumário como a terceira matriz da nossa formação cultural junta-se às duas primeiras. Darcy Ribeiro descreve em dois longos parágrafos notáveis (ver pp. 119-120), de intensidade descritiva comovente e chocante,  o  percurso de vida do escravo africano desde o  momento em que era aprisionado e vendido ou trocado no seu continente até o seu fim como trabalhador escravizado no trópico. Segundo o autor, o tempo de vida médio de um escravo submetido ao trabalho pesado – portanto distinto do escravo doméstico preferencialmente estudado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala – ia de sete a dez anos. Trabalhando o ano inteiro, sem pausa sequer aos domingos, dia em que era liberado para cultivar a rocinha de onde extrairia seu sustento. Melhor que pobremente parafrasear os parágrafos citados é citar o segundo, que vai da página 119 à 120:

“Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos – maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou  orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela como um graveto oleoso”.

Parafraseando  Brás Cubas, de Machado de Assis, foi sobre esse solo tenebroso que a elite brasileira  se formou, assim como foi sob ele, ou calcado pelas botas da escravidão, que se moldou e torturou não apenas um povo, o brasileiro, mas uma rede de instituições, técnicas de governo e dominação, de regime de trabalho espoliador, de práticas de vida e relação social que infelizmente não desapareceram de todo da nossa realidade presente.

De onde afinal vem esse povo tão sofridamente descrito no livro de Darcy Ribeiro, de onde procede sua identidade? O autor propõe uma teoria baseada na condição de “ninguendade”, com perdão do neologismo esquisito, do fruto da miscigenação processada inicialmente entre o colonizador português e a índia, mais tarde entre aquele e a escrava negra. Darcy afirma que os filhos brotados desses acasalamentos, origem da miscigenação generalizada que passou a caracterizar a etnia brasileira, eram ninguém, já que nem eram brancos, nem índios nem negros. Eram produto de uma mistura rejeitada por qualquer das etnias individuais das quais eram formados. Foi portanto dessa condição de zé ninguém, de “ninguendade” que se forjou a nossa identidade cultural, o brasileiro que já não  era individualmente nenhuma das etnias formadoras, mas produto da sua miscigenação, isto é, um ser étnico novo.

Tanto quanto Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro ressalta o fato de que o Brasil se formou economicamente como um apêndice da Europa, colônia produtora de bens primários subordinada à demanda do mercado europeu. Esse dado primário está na raiz da violência exercida pela classe dominante ao longo da nossa história. Está também inscrito na condição de proletariado externo vivida pelo povo brasileiro. Darcy Ribeiro usa repetidas vezes expressões cruas, mas infelizmente verdadeiras, para denunciar os processos brutais que ao longo da nossa formação histórica oprimiram nosso povo. Quando usa expressões como moinhos de gastar gente, ou gente usada como carvão, denuncia a opressão imposta pela classe dominante ao povo, particularmente o povo escravizado, o povo castigado por um regime de trabalho incompatível com o ideário humanista e cristão nunca de fato estendido à maioria da população.