A maioria dos críticos elogiou o sentido de construção, bem como a utilização dos recursos sonoros ou ainda a direção de atuações excepcionais, ou seja, o que é próprio da matéria cinema. Mas disso, pouco entendo. Não sei porque, na árvore em frente à casa de Bia, naquele clima de bairro e de rua, lembrei-me de Vivement Dimanche, de Truffaut. É tudo. De cinema, não falo mais, pois, contra a tendência ao direito geral de expressão e de dar pitaco sobre tudo e qualquer coisa, assumo que sou do bloco que recomenda que o sapateiro não vá além dos sapatos! Portanto, vou falar do enredo ou trama, do filme de um ponto de vista de moradora da cidade do Recife, bem como na condição de professora de arquitetura e urbanismo.
Devo dizer que ando revoltada com o rumo que tomaram os estudos urbanos e o urbanismo em geral, pelo menos nas publicações às quais tenho acesso. Ando sobretudo indignada com os discursos sobre a cidade, no Brasil, nos tempos que correm, depois que os diversos atores – professores, pesquisadores, consultores – que reivindicavam adotar um pensamento de esquerda tornaram-se autoridades e responsáveis pelas políticas urbanas. Como muito bem dizia Daniel Pécaut, no seu muito arguto livro sobre os Intelectuais no Brasil, que tanto desgostou os atingidos, é impressionante a capacidade que tem/ temos os brasileiros de “estarmos” governo e, no dia seguinte, nos desresponsabilizamos e nos travestirmos em “sociedade civil” contra as autoridades. E assim é, entram e saem ditaduras. Entre o povo e a nação é o título do livro de Pécaut, que foi publicado em 1989, mas continua de uma grande atualidade. Falar em nome do povo, na sociedade brasileira, é um dos esportes favoritos de políticos e intelectuais (às vezes confundidos na mesma pessoa, pois a sonhada autonomia de Manheim nunca teve vez por aqui). Políticos e intelectuais, grandes e pequenos, orgânicos ou inorgânicos, cosmopolitas ou provincianos, aqui todos falam pelo e em nome do povo. Mas a noção de povo aqui é um pouco especial, particular. Nos Estados Unidos, por exemplo, quando se fala do povo, a frase é inclusiva: we people. No Brasil, país onde o furor da “incruzão sociar” é ubíquo, o povo são os outros, e, na maioria das vezes, os pobres. Povo, pobre e pedestre, a despeito do que registram Aurélio e Houaiss, são sinônimos, no nosso patropi. Não é, portanto, de espantar que, numa reportagem local, algo no gênero de Globo Nordeste, pouco antes do carnaval 2013, o repórter, falando diretamente da prefeitura do Recife e espantado com a descoberta de uma cidade desconhecida para ele, perguntava aos ouvintes se eles teriam coragem de ir ao centro, de mostra-lo aos turistas ou familiares residentes alhures. É possível que o repórter – como muitos pertencentes ao mesmo gueto onde ele vive – nunca tenha tido realmente a ocasião de por os pés no centro da cidade, além de um salto por ali, ao redor do marco zero, sobretudo em tempos de carnaval. Com certeza, ele não conhecia o centro da cidade e falo do centro estendido, Bairros do Recife, São José, Santo Antônio e Boa Vista, pelo menos, fora do carnaval. Deve ser um jovem cidadão típico da vivência nas chamadas novas centralidades. Nisto, ele não está só. Muitos urbanistas e colegas vem denunciando o fato de que as pessoas abandonaram o centro, abandonaram as ruas, mas parecem desconhecer que, nestes bairros, como em muitos outros bairros populares, o povo está, vive, trabalha, come e muitas vezes dorme nas ruas. Onde não estão as “pessoas”. Mas que sutil diferença entre o povo e as pessoas!! Essas pessoas da sala de jantar… Pois é, como bem indicou Flavio Villaça nunca os centros da cidade estiveram tão cheios de vida, nem as ruas, no centro e nos bairros populares: onde está o povo. Onde está o povo, ao que parece, não estamos nós, intelectuais e acadêmicos que, ainda por cima temos o topete de falar em nome dele, insistimos em dar voz aos que não teriam, aos oprimidos. Além disso, ajustamos nossos discurso urbanístico às conveniências das políticas públicas: ora o povo é rei e sabe fazer melhor do que todos os técnicos, que morreram de estudar. Então deixa-se construir as gambiarras de qualquer jeito. Ora, precisamos educá-los, auxiliá-los, então vamos prestar assistência técnica para a habitação popular sair menos ruim. Institucionalizamos, com maestria, o direito à cidade, numa versão tropical que talvez muito regozije Lefebvre no seu túmulo. Será?
O cidadão de segunda categoria, tem direito à cidade de segunda categoria, como nas ZEIS. E todo mundo vive bem. O Entra a pulso, Zeis ao lado do shopping center Recife, deste se beneficia e se gentrifica, consolidando um padrão urbano de convivência social exemplar. No meio, há um fosso com esgoto aberto, mas quem chega no shopping a pé? Os grandes empreendimentos de luxo convivem com a gambiarra urbana. São as cigarras junto das formigas, para utilizar o termo do livro de Pierre Salama, saído em 2012, cuja capa bem expressa isso. O complexo empresarial do Pina, com suas belas torres, brotando como cogumelos, ao lado da ZEIS de Brasília Teimosa também é um belo exemplo desta nossa tolerância que ergueu necessidade em virtude. Os acadêmicos louvam o padrão precário tanto das ZEIS quanto de empreendimentos do Minha Casa, minha vida, mas lá não moram!!As discussões sobre acessibilidade, mobilidade urbana são para o povo. Por que na lógica deste padrão dual, os que já tem um lugar ao sol, nome do excelente documentário de Gabriel Mascaró sobre os felizes moradores de coberturas, pouco estão se incomodando com a cena pública. As calçadas em frente às suas torres podem estar esborrachadas, deixando ver os esgotos ao vivo, pouco importa. Em sua grande maioria, eles nem veem pois saem nos 4×4, com motorista, que cuidarão de estacionar o carro. É verdade, há muito engarrafamento na cidade, mas, com um pouco de jeito, andando em certos horários ou, quem sabe, com os próximo oito viadutos (o modo mais rápido de ir de um engarrafamento para outro, já dizia o urbanista) a coisa vai melhorar. Além disso, há um outro meio, jatinhos e helicópteros para as cigarras; motos para as formigas[1]. Em Um Lugar ao sol (2009) documentário e, depois com o híbrido Avenida Brasília Formosa (2010), Mascaro mostrava, respectivamente, o lado das cigarras e das formigas, uma verdadeira aula de urbanismo. Poderíamos retomar ambos em nossas mentes, fusioná-los e colocar os personagens de Brasília Teimosa chegando, de moto ou em calhambeques, para prestar serviços diversos aos moradores das coberturas, enquanto sonham em vir a ser um deles. Ah! O que seriamos nós sem nossos sonhos?
Mas o que tem este meu desabafo a ver com o Som ao Redor, o filme de Kléber Mendonça? Tudo. Mascaro registrou dois mundos dos quais no cotidiano, a classe média vive relativamente afastada: o dos muitíssimos ricos e dos mais pobres. Para ambos, sua câmara foi carinhosa, num olhar que não chega a ser cúmplice, mas que é compreensivo, cheio de afeto.
No Som ao redor, a câmara de Kléber é neutra, distante, implacável. É assim pelo menos que eu senti chegar o universo urbano de classe média, que complementa aqueles dois opostos, apresentados nos filmes de Mascaro. Nem colorido e pitoresco como Brasília Teimosa, nem aberto a céu e mar, como um Lugar ao Sol. O universo da classe média, retratada por Kléber é engradeado e embanheirado[2].
Acerto de contas: Justiça ou vingança?
Mostradas no filme, as mudanças urbanas contemporâneas, bem como as relações de poder e, sobretudo, as relações domésticas de trabalho, foram destacadas por muitos críticos, como Marcelo Hessel[3] e César Zamberlan[4]. Este último, aliás, identificou, no filme, o retrato de:
algumas mudanças sociais bastante interessantes, com a ascensão de uma nova classe média, [e]ainda que não consiga ou não mexa diretamente com as questões de base, as questões históricas de poder, seja dos senhores de engenho e seus crimes do passado, seja dos torturadores que agora começam a ter seus crimes revistos – fato que não está no filme, mas se encaixa num contexto bem próximo.
Viu ainda Zamberman, no acerto de contas que encerra o filme, uma pista de que as relações cordiais, no sentido tratado por Sérgio Buarque de Holanda, estariam mudando ainda que lentamente.
Não vi nada disto. O que, para mim, é um dos muitos méritos do filme, e reside, como bem assinala Pablo Villaça [5]: [n]a ironia fina do cineasta que, ainda mais importante, não se preocupa em martelar sua mensagem na cabeça do espectador.
Qualquer que seja o sentido que se possa dar ao final do filme, ao chamado acerto de contas, e ainda que o cineasta não faça proselitismo, uma coisa exala, entretanto, na minha leitura: nesta sociedade da cordialidade, como ressaltou Buarque ou do sincretismo e afeto, como ressaltava Gilberto Freyre, ninguém (ou quase ninguém) quer justiça. Todos querem vingança.
Assim, na minha leitura, não houve acertos de conta. Se ouvimos os sons que sugerem um crime, na verdade, muitos outros desfechos são possíveis. Aposto numa violência ameaçadora, mas que será seguida de um novo arranjo entre seu Francisco e Clodoaldo, como símbolo do arranjo que efetuam, atualmente, as chamadas novas classes médias urbanas – ou os “incruídos” – e as oligarquias poderosas antigas. Ou seja Um Som ao redor, parteII.
Recife e o aggiornamento de Casa Grande e Senzala.
Nesse sentido, para mim, os personagens de Kléber são verdadeiros arquétipos. No meu prédio, como em todos os prédios que frequentamos, há os Clodoaldos, zeladores e/ou flanelas assassinos que nos ameaçam, na ambivalência de uma cordialidade buarquiana. Há também seus Franciscos, é claro, que também estão ameaçados pelos Clodoaldos, que tentam cooptar. Há ainda os seu Agenor, porteiro velho que não dá mais conta, bem como os sobrinho de seu Francisco, o bonzinho, corretor, meio ai que preguiça” e o primo, ladrão e marginal. Os empregados domésticos, como os que temos – com PEC ou sem PEC, vemos, longe de uma relação contratual e profissional, desenvolvem uma relação afetiva com patrões, trazem os filhos, entram por casa a dentro, faltam, ajeitam-se. Por outro lado, tal como João, o patrão, nossos cuidados com os empregados, não ultrapassam, como diz Villaça, “a condescendência cega, absurda e, mesmo [quando] bem intencionada, ofensiva. Penso, como este crítico, que o filme retrata sobretudo a incerteza da velha classe média urbana tradicional, acuada, de um lado com a ascensão da chamada nova classe média e, de outro, pela grande concentração de renda nas mãos dos mais ricos. A dicotomia Casa Grande Senzala, que havia tomado as feições de sobrados e mocambos reproduz-se agora, no nível urbano, entre as ZEIS ou as comunidades e os grandes imóveis de luxo, vivendo lado a lado. Uns constroem e são proprietários do shopping center Rio Mar e os outros se endividam nas casas Bahia.
Neste meio, a velha classe média, apertada, engradeada e, sobretudo, amedrontada. A casa derrubada, como lembra Villaça, é uma metáfora. Poderíamos dizer que derrubado foi todo um projeto incipiente da modernidade, como bem documentou, em arquitetura, Luiz Eirado Amorim. Por isso, no lançamento do livro de Guilah Naslavsky, quando Marco Antonio Borsoi falava do quão nostálgico parecia o registro da arquitetura pernambucana até 1972, lembrei do filme de Kléber Mendonça.
Fruto de uma arquitetura moderna tardia, em geral de qualidade inferior, os apartamentos do filme são quase todos iguais, com a mesma cerâmica, a mesma configuração espacial, a mesma decoração das salas e, sobretudo, a organização da cozinha!! Tudo parece conhecido, como se houvéssemos estado em todos eles!! Como tudo é familiar, não apenas porque conheço Rejane Rêgo, a compradora potencial de um apartamento, ou outros artistas do filme como Mucio Jucá, Yannick Ollivier e Dida Maia.
O final é aquela sensação de desespero, impotência. Como Sofia, queremos ir embora, ter outra estória. Porque a única forma de suportar esta cidade é fazendo um filme, para quem sabe fazer, e se fizer bem, como Kléber, só mesmo agradecendo!
[1] Segundo a Folha de Pernambuco, http://www.folhape.com.br/cms/opencms/folhape/pt/edicaoimpressa/arquivos/2012/08/14_08_2012/0045.html, em material rebocada da Folhapress, dentro de dois anos, o Brasil possui hoje a segunda maior frota da aviação geral – conta que inclui helicópteros e turboélices -, mas a terceira de jatos executivos. São 719 jatos, segundo a Embraer, ou 623 pelas contas da Associação Brasileira da Aviação Geral (Abag), deve passar o México e se transformar no segundo maior mercado de jatos executivos do mundo.
[2] Para usar a expressão da professor Edja Trigueiro para esta onipresença das cerâmicas que recobrem fachadas e muros urbanos.
[3] http://omelete.uol.com.br/cinema/o-som-ao-redor-critica/
[4] http://www.revistainterludio.com.br/?p=5124
[5]http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/filme/ver.php?cdfilme=12501
Soninha, não vou comentar seu artigo pois não o li ainda; quero somente dizer como achei bom novamente saber de você. O mundo dá muitas voltas mesmo.Um abraço.
Sonia, adorei o artigo…parece que estou ouvindo vc falar…
Uau! Vou recomendar a leitura.
abraço
Eu de novo por aqui, agora para falar do artigo, sapateira além dos sapatos que usa a net e os sites que lê pra meter o bedelho em muitas coisas. Estou, no entanto, confortável, pois estou em três posições que me permitem isso: sou apenas leitora, espectadora e cidadã. Não preciso, portanto, entrar em questões técnicas de cinema, muito menos de urbanismo, o que inviabilizaria minha conversa. Mas vamos lá, o objetivo aqui é a discussão, creio.
Gostei muito desse filme e relevo o que considerei o melhor dele, a sensibilidade fria e certeira com que a maioria das questões foram tratadas. Achei seu artigo bom, sobretudo pela crítica ferrenha e pelo inconformismo com o rumo da(s) cidade(s), resultante de políticas e posturas incorretas.
Estranhei, porém, a referência à inclusão social e aos incluídos do modo como foi feita; falar assim me pareceu ridicularizar, mais do que a pessoa objeto, um processo pelo qual a juventude lutou muito nos tempos da ditadura e muitos pagaram caro por isto.
No meu pensar de cidadã, as vozes mais esclarecidas da intelectualidade, ao manifestarem seus questionamentos ou mesmo descontentamentos, deveriam se despir totalmente dos preconceitos, a começar pelo de pensar que não tem preconceito – como bem levanta um artigo desta revista – entretanto o manifestando nitidamente. Considero que só assim, independente de se concordar como isto ocorreu ou vem ocorrendo no país, a crítica pode focar o que é essencial: os erros de condução política que corroboraram com as distorções no uso dos espaços urbanos e até nas relações e conflitos de classe, bem expressos – embora sucintamente – no filme e no seu artigo também.
Sonia,
É perfeita a sua crítica, sobretudo ao tocar no ponto focal do filme: a “incerteza da velha classe média urbana tradicional”.
Acho que O Som ao Redor leva essa incerteza às raias do tédio, que transparece não apenas no vazio existencial de alguns personagens, mas também na repetição insosa da arquitetura, por toda parte no filme, e, sabemos, na cidade.
É muito bom ler os seus trabalhos.
Um abraço,
Eliane Lordello
Vitória. ES.
Corrigindo a digitação: arquitetura insossa. Obrigada!
Fátima
Obrigada pela leitura e pelo puxão de orelha! Você tem razão.
Precisamos conversar ao vivo. Lutei por tudo isto e talvez por isto mesmo esteja tão revoltada com a onda crescente de populismo que, na minha opinião, confunde o que seriam reais conquistas, com distribuições de migalhas.
Mas esta é outra estória.
Meu abração
Soninha
Olá Sônia Marques, muito bom o artigo que assina. Já compartilhei com colegas e alunos. Gostei do filme, sobretudo, porque trata de uma realidade próxima. Não só por isso, por revelar sutilezas sociais, como as mencionadas “relações cordiais”. Gostei do seu artigo, principalmente, pela gostosa escrita e por me solidarizar a sua indignação com respeito a posições públicas de “formadores de opinião” no nosso país. Se nos estendermos aos papeis que tem assumido a imprensa brasileira, a revolta será ainda maior. Acho que o cinema, as redes sociais e a crítica publicizada é uma alternativa que nos alivia. Parabéns pela exposição.
Sonia, compartilho parte de suas angústias urbanísticas, incluindo a crítica à ideia de construir, como solução, uma cidade de segunda classe para pessoas de segunda classe. Contudo, penso que mesmo os urbanistas progressistas vêm criando alguns equívocos em suas posições pretensamente revolucionárias. O mais hegemônico talvez seja a dupla crítica que se faz ao “espraiamento” das cidades (como se fosse bom vivermos em enormes densidades populacionais), e à ideia fixa de concentrar os pobres no Centro das cidades. Apesar dos títulos acadêmicos vistosos de muitos que defendem a alocação de “moradias sociais” nas áreas centrais, não consigo deixar de pensar no primarismo da proposta, elaborada a partir de conceitos toscos como “a infraestrutura do Centro é nobre e subutilizada, então façamos justiça social e instalemos os pobres nesse paraíso abandonado”. Ora, os Centros originários são o cuore coletivo, são espaços de significação urbana única que devem ser revitalizados e vivenciados por toda a sociedade. Há questões culturais, significantes, aí que extrapolam e muito o primarismo (e o utilitarismo barato) da simples utilização da infraestrutura preexistente.
Quanto ao espraiamento, se ele tem como gênese a especulação predatória praticada de vários grupos, inclusive aqueles que executam loteamentos ilegais em terras que não lhes pertencem, vendendo títulos falsos a duplamente pobres compradores (prática comum em São Paulo), o fato é que a migração se encarrega de preencher os vazios especulativos com certa rapidez. O que se inicia como espraiamento desnecessário se torna fato urbano consumado em poucos anos. Em português bem claro, a cidade cresce efetivamente e se espraia porque é muito (excessivamente?) populosa.
Se alguns creem que as dimensões da metrópole se tornaram excessivas, então proponham a criação de novas cidades, menores, no entorno (como se fez em Londres), ou mesmo campanhas de incentivo e viabilização do retorno de parte dos migrados para suas regiões (até porque a migração em si quase nunca é um ato de desejo cultural ou afirmação da vontade, é muitas vezes pura necessidade, muitas vezes a contragosto).
Mas querer resolver o problema de uma pretensa expansão excessiva simplesmente adensando os bairros menos periféricos é ir contra o bom-senso e a boa experiência urbanística. É querer sucatear a cidade legal.
Até porque, como digo, a fonte dos problemas do pobre não é “morar longe”. É ser pobre. Muitos “ricos” optaram por morar longe há algumas décadas, e estão muito bem, obrigado.
ps.: concordo com você em relação ao cinismo contido na dicotomia “povo” e “pessoas” ou ainda pior, “pobres” e “pessoas”, incluindo quando aplicado à ocupação (ou pretensa “não ocupação”) das áreas centrais. Mas é sempre triste (e problemático) eu não ter coragem de fotografar a incrivelmente bela Igreja de Nossa Senhora do Terço do Recife por receio de abrir a mochila naquele local (e expor minha câmera). Tenho a mesma sensação em vários pontos do velho Recife, para além do gueto do Marco Zero. Isso não é bom.
Arnaldo
Só pude comentar parte de seu comentário agora, ano novo, por razões diversas. Estou inclusive devendo minha prometida colaboração à revista Será. Vários artigos iniciados e não concluídos.
Não acredito que o problema urbano deva ser enfrentado através do dilema espraiamento versus concentração. A solução das cidades novas e periféricas, no caso parisiense, é sempre para os menos sortudos. Os felizardos continuam dentro da cintura de Haussmann, no máximo vão morar em Neuilly. Já o espraiamento no caso londrino ou de Los Angeles não implica em déclassement social. Cada situação é particular e mais que os urbanistas o sabem os corretores que sabem o preço do imobiliário em função da localização. morar na frente do Central Park em relação aos preços de Manhattan não tem o memso valor que morar na frente do parque 13 de maio, para o caso recifense. A lei do ciclo de desvalorização e recomposição do valor dos espaços urbanos é geral, mas a atribuição de valor à residência em areas centrais, por exemplo, depende de muitos fatores culturais inclusive. Mas isso exigiria um outro artigo.
Por Hoje, digo: não tenha receio de abrir sua mochila com sua câmera fotográfica para fotografar a Igreja do Terço. Fui na comunidade do Pilar de motorista (estou com restrições para dirigir) num domingão. Fiquei constrangida de atrapalhar as famílias que usavam as ruas enlameadas como varandas. E delas não tirei fotos. Mas desci do carro e com uma amiga andei pelo bairro e tirei fotos da igreja e do conjunto habitacional. Ando por bairros populares e a pé pelo meu bairro da Boa Vista com muito menos medo do que quando me vejo, como anteontem, sozinha a andar numa rua de muro alto e opaco em Boa Viagem. A associação lugar de pobre, lugar de crime data de muito tempo, mas revela-se muito enganadora. Mas isto também é assunto para outro artigo.
Sonia
Excelente,Sônia!
Eu sou moradora do Derby e ando a pé por todo o bairro e adjacências sem o menor problema.Utilizo ônibus (para espanto de muitos…) e conheço todo o centro do Recife,que infelizmente só é lembrado pelas autoridades no período de carnaval e,preferencialmente, dando destaque para o Marco Zero.Também,ontem ,estive em Boa Viagem e é um pavor caminhar nas ruas cercadas por muros altos (fato constatado em outros bairros “nobres” da cidade…) num verdadeiro apartheid sócio-econômico,estabelecendo novos conceitos da Casa Grande & Senzala, apesar ( ou devido à ?) da “incrusão”
de novas classes e suas demandas sociais.
Sofia
Devemos estar quase vizinhas!! Que bom partilharmos esta sensibilidade de apreço ao que nos resta de espaço público.
Talvez nos cruzemos entre a Boa Vista e o Derby, um dia desses.
Um abraço
Sonia