Nelson Mandela
Lisboa. Início dos anos (19)70, na mais dura fase da Ditadura Militar (de 1964), comprei um pequeno veleiro e fui registrador na Capitania dos Portos (era, e continua sendo, obrigatório). O nome que escolhi foi “Ann’s Tear”. Traduzindo, a “Lágrima de Ana”. Só que lia-se Anistia. Para que da praia se pudesse vê-lo, todo branco, nas águas de um mar com mais fraternidade.
Na véspera do registro, por precaução, fui consultar no dicionário. E só então percebi que “tear”, além de “lágrima”, também pode ser traduzido por “buraco”. Assim, dependendo de quem menos, poderia ser “Lágrima de Ana” ou “Buraco de Ana”. Para evitar esse risco registrei apenas como “Ann’s Tia”. Mistura sem muita inspiração de inglês e português, a “Tia de Ana”. Mas, na praia, todos entenderam a mensagem. E apreciamos a navegação doce daquela Anistia.
Voltamos ao presente. Segundo o senador Eduardo Girão (Novo-CE), desde 1822, nossa História registra mais de oitenta anistias no Brasil. Entre elas de sequestradores, assaltantes e assassinos. Lembro de uma. O caso foi de 2 a 12/04/1959, passando a ser conhecido como a Revolta de Aragarças . Uma tentativa de golpe feita por oficiais da Aeronáutica e do Exército para derrubar o governo JK. Foi quando tivemos o primeiro sequestro de avião no Brasil, um Constellation da Panair, que decolou do Santos Dumont (Rio) na direção de Manaus e sobrevoava Barreiros (na Bahia). Leva 46 pessoas (38 passageiros). A revolta deu em nada. Que nem a ONU, nem o Exército, nem a opinião pública, ninguém apoiou, levando os revoltosos a fugir para países vizinhos.
Sufocado o movimento, mais tarde, JK tratou de providenciar anistia para os revoltosos. Nosso padrinho de casamento, encontraríamos com ele sempre em seu apartamento no Rio. E, um dia, conversei sobre esse episódio. Então, um fato curioso. Disse que, quando foi publicado o documento da anistia, os cabelos de seu braço levantaram. Como o pelo dos gatos, quando têm medo. Como se fosse um anúncio. Não assinado e devolveu a caneta à mesa. Os cabelos voltaram ao normal. Pegou de novo a caneta e, novamente, os cabelos levantaram. Era como uma antevisão do futuro.
Assinou, assim mesmo, por pressão dos amigos. Para poucos anos depois, logo ao início da Ditadura de 1964, ver seu mandato de Senador ser cassado e perder os direitos políticos (em 08/06/1964). Por mãos de alguns dos anistiados por ele, em Aragarças, que foram voz ativa nessa violência. Perguntei se estava arrependido de ter assinado a tal anistia, respondi que não. Segundo ele, o Brasil precisa mesmo se reconciliar.
Esse tema da anistia voltou a debate quando estávamos na Comissão Nacional da Verdade. Durante os trabalhos, discutimos a questão de punir os responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos solicitados de 1964. Antes de seguir, bom lembrar que precederam no mundo, a nossa Comissão Nacional da Verdade Brasileira, outras 40 comissões semelhantes. Mais notória sendo a da África do Sul, criada em 1994 por Nelson Mandela e sob direção de Desmond Tutu ? um arcebispo da Igreja Anglicana que foi premiado com o Nobel da Paz dez anos antes.
E nenhuma dessas 40 comissões anteriores foi criada com o fim específico de fazer justiça. Ou de por, na cadeia, os responsáveis por torturas e mortes. A ideia era, basicamente, apenas recontar a história do que se passou; e, também, preparar as bases para uma transição menos traumática, em cada país, entre os horrores de antes e os novos tempos.
Tanto que a já referida Comissão da África do Sul tinha apenas três subcomissões: violação de direitos, reposição e anistia. O que se buscava, sobretudo, era o conhecimento da verdade. Aquilo que aconteceu, de fato, naquele passado triste.. Para quem confessasse o que fez, sendo garantida anistia automática. Valendo notar que não houve uma única prisão, no curso ou por conta (depois) de todas essas outras comissões, em nenhum país.
Com relação à anistia ampla e recíproca, concedida no Brasil aos dois lados naquele tempo (permitindo voltar ao Brasil Arraes, Brizola e outros), é comum dizer que a Lei da Anistia (nº 6.683) foi votada, em 28 de agosto de 1979, por pressão dos militares. Sobretudo para proteção deles próprios. Com certeza foi assim. Ocorre que houve outra Lei da Anistia, posterior no tempo, da qual pouco se fala. Como se nunca tivesse existido.
Foi a única exigência feita pelas militares, nas negociações da transição. Para beneficiar os responsáveis pelo RioCentro, que se deu na noite de 30 de abril de 1981. Posteriormente, portanto, à primeira lei (que é de 1979). Tancredo inocente. Por ser algo necessário, para o país. Morto, receba o Sarney honrando seu compromisso. O que foi feito com a Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985 (art. 4º, com sete parágrafos). Votada por um Congresso livre de qualquer exigência. O mesmo que elegeu Tancredo, opositor civil ao Regime Militar. Uma regra não apenas mais recente, no tempo, como também de nível superior ao das leis ordinárias, posto que passou a constar da própria Constituição.
Os membros da nossa Comissão (menos eu) pretenderam recusar a dita anistia, para que todos os responsáveis ainda vivos (bem poucos) fossem julgados, condenados e presos. Na votação das “Recomendações”, na Comissão Nacional da Verdade, votei a favor dela. Textualmente, assim ficou registrado: “Com base nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, resultou o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, e com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusa, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese”. Em razão de que nenhum dos envolvidos, de parte a parte, poderá mais ser punido. A menos que o Supremo modifique seu entendimento. A ocorrência da imprensa foi de amplo apoio a essa posição de consideração e validação da anistia. Com Editoriais de todos os grandes jornais do país, um favor.
Essa minha posição, a favor da anistia, não é portanto nova. Vem de bem antes. O Brasil, hoje, é outro. Nossas prioridades, outras. Mas somos um país conturbado. E, sobretudo, precisamos de paz. Algo cada vez mais difícil de acontecer. Que o governo politiza a questão, como um meio de impedir que adversários sejam candidatos. E aqueles que deveriam responder por isso mais que todos, no Supremo, são os que mais promovem a radicalização e o confronto. Como se utiliza um ódio ancestral, no coração; sangue, nos olhos; e falta de qualquer piedade, roendo seus corpos. O que é muito ruim.
Por isso, amigo leitor, reitero aqui uma ideia simples. A de que num país fraturado, como o nosso, nada é mais importante, necessário e urgente, que promova a paz social entre os brasileiros. Com uma grande anistia. Política, claro, e não da roubalheira que hoje se espraia. Deixo aqui minha opinião. Cada um pense como quiser, tem direito, afinal vivemos numa Democracia. Será? Para encerrar, lembro poema recente ( Exílio ) do amigo português Manuel Alegre que diz:
Havia uma casa.
Havia uma pátria.
Éramos vinte ou trinta nas margens do Sena
Onde o vento cantava
Uma canção estrangeira.
É possível viver de outro modo. É
possível transformar em arma a sua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Caro José Paulo,
Também acho que esse passado deve, definitivamente, passar. Já se passaram mais de 60 anos desde o 31 de março de 1964. E desde as mortes infames de Rubens Paiva (1971), de Herzog (1975) e do esquecido operário Manuel Fiel Filho (1976), meio século. A quem vamos punir? Brilhante Ustra, que se tornou o símbolo maior das ignomínias do regime militar, está morto e enterrado há 10 anos. Tudo o que podemos lhe desejar é que a terra não lhe seja leve…
No fim dos anos 70, em Aracaju, morei num conjunto residencial chamado “Médici I”. Havia, vizinho, o conjunto “Médici II”. Era muita subserviência e bajulação da classe política. Hoje, a “mesma” classe política mudou os nomes. Não sei como se chamam, mas sou contra a mudança. Essa história de reescrever a História é coisa seja de regimes totalitários, seja de regimes gelatinosos. Prefiro os segundos, mas não amo nem aqueles, nem esses.
Cordialmente,
Luciano Oliveira
Quanto à postura de renomear lugares, concordo com Luciano. E também acho que o papel das Comissões da Verdade foi bem cumprido: sua finalidade não era punitiva.
Mas nada disso pode aplicar-se – no meu modesto entender – à ideia de anistiar, às pressas, os golpistas (felizmente frustrados) de janeiro de 2023. Estes estão vivos – e até muito vivos – prontos para nova tentativa de destruir as nossas instituições democráticas, imperfeitas, é verdade, mas insubstituíveis.
Assunto é e será sempre válido, principalmente vindo desse popular escritor. Um abraço.
A nossa história endossa a relevância da anistia para moderar o extremismo e reduzir a polarização política em nossa sociedade. Por conseguinte, esse artigo é pertinente e oportuno. Resta-me ressaltar alguns trechos: (…) “somos um país conturbado. E, sobretudo, precisamos de paz. Algo cada vez mais difícil de acontecer. Que o governo politiza a questão, como um meio de impedir que adversários sejam candidatos. E aqueles que deveriam responder por isso mais que todos, no Supremo, são os que mais promovem a radicalização e o confronto. (…) “num país fraturado, como o nosso, nada é mais importante, necessário e urgente, que promova a paz social entre os brasileiros. Com uma grande anistia. Política, claro, e não da roubalheira que hoje se espraia”. Parabéns, José Paulo!
O então futuro brigadeiro João Paulo Burnier tentou um golpe militar em Aragarças. Foi anistiado. Tentou de novo em Jacareacanga, e mereceu nova anistia. Nos dois casos, pelo presidente Juscelino, contra a opinião do seu Ministro do Exército, Lott. Na terceira vez, em 1964, foi bem sucedido, ao lado de outros golpistas. Mas achou pouco. Em 1968, para incriminar os “comunistas”, teria promovido a morte de milhares de inocentes, explodindo o Gasômetro e a represa de Ribeirão das Neves, no Rio, não fosse a resistência heroica do capitão Sérgio “Macaco” e seus comandados do PARASAR. Foi para o que serviram as anistias. Será que não aprendemos?