Recife, 21 de abril de 2014.
É muito comum aparecer em revistas (especializadas ou não) entrevistas com neurocientistas e outras espécimes nos comunicando um novo aparelho de alta tecnologia capaz de desvendar os mistérios do homem em seu mais recôndito universo: sua estrutura psíquica.
São milhões de dólares investidos nesta desesperada e inútil tentativa de capturar o humano e suas vicissitudes.
Esta biologização do sujeito certamente tem um fim comercial ou de dominação – sempre ela -, para produzir algo que nos afaste da depressão ou alivie uma angustiazinha aqui, outra acolá. Enfim, se eu sei tudo sobre você, principalmente sobre aquilo ao que você é alienado e determina sua existência, fazendo-o sofrer com isso, tenho a faca o queijo para sobre você impor meu saber que o fará dependente de mim, e pagará por isso.
Sem desconsiderar o evidente apoio das drogas (legais e/ou ilegais) para, em alguns casos, nos ajudarem a lidar com nossas lutas internas diante da vida, me inquieta este desejo onipotente da ciência em tudo saber e tudo explicar sobre nossa indecifrável humanidade. Como também não me convence a Religião que durante séculos impõe a ferro e fogo (literalmente, durante a Santa Inquisição) seu saber, sua visão de mundo que a tudo explica sobre nossas vidas, e, principalmente após o fim da nossa existência.
Freud em 1904 em seu texto “Sobre Psicoterapia” já apontava na direção de ser isto impossível. Cada ser humano – Graças a Deus!-, é um universo único em sua subjetividade e, portanto, inalcançável, mesmo que não tenhamos consciência dessa nossa singularidade.
Diz ele, citando um diálogo entre Hamlet e Rosenkranz e Guildenstern, enviados pelo tio traidor, assassino do pai de Hamlet que casou com a viúva, ainda com o corpo do rei quente.
“O instrumento anímico – aqui alma no sentido do espírito filosófico e não espiritual – não é nada fácil de tocar. Nestes casos, recordo sempre as palavras de um neurótico famoso em todo o mundo, que nunca foi tratado por nenhum médico, pois viveu apenas na imaginação de um poeta. Refiro-me ao príncipe Hamlet da Dinamarca. O rei enviara para junto dele dois cortesãos (Rosenkranz e Guildenstern), a fim de sondá-lo e arrancar-lhe o segredo de sua melancolia. Hamlet os repele. Neste ponto, trazem à cena umas flautas. Hamlet apanha uma e estende-a a um dos importunos, convidando-o a tocá-la. O cortesão se desculpa, alegando completa ignorância daquela arte, e Hamlet exclama: “Que juízo fazes de mim! Queres-me tocar, presumes conhecer meus registros, pretendes arrancar o mais íntimo de meus segredos, fazendo-me emitir desde o mais grave ao mais agudo de meus tons; e não podes fazer soar este pequeno instrumento, capaz de excedentes vozes e de harmonia. Julgas que me tocarás com mais facilidade que a uma flauta? Não, toma-me pelo instrumento que quizeres; por mais que me manejes e te esfalfes não conseguirás tirar de mim o menor som”.(Acto III, cena 2)” Freud in Sobre Psicoterapia (1904)
Para quem conhece um pouco de Freud e principalmente da obra de Lacan, que envolveu o pensamento de Freud com a filosofia das boas ( Hegel, Heidegger e turma) é risível o que a “ciência” com sua prepotência tenta nos impor como um saber absoluto sobre o homem.
Como tentar apreender as razões do desejo humano com uma máquina que mostra –até colorido- as variações das atividades cerebrais do sujeito? O corpo humano é uma pálida expressão, ou caixa de ressonância do desejo, como falta (angústia) que estrutura o sujeito ao inconsciente! E o desejo, assim como o inconsciente, provém do Outro.
Para a Psicanálise somos seres fundados na angústia (um vazio estruturante do sujeito, ou sujeito barrado para Lacan), perpassados pela linguagem e desejante para a morte.
Este sujeito estruturalmente incompleto já está, há muito, identificado pelos poetas, artistas, filósofos e escritores. Sócrates e Shakespeare são exemplos e foram forte influência sobre o pensamento de Freud. Inicialmente, Freud não tinha a preocupação de pensar o ser humano e o social, era pura preocupação científica de investigar as doenças da alma, (e aqui não me refiro a alma no seu conceito espiritual e sim filosófico) foi graças a sua vasta formação intelectual que a psicanálise surgiu, e desde seu início, rompeu para sempre o estreito, empoeirado e pretencioso foco que a ciência tenta, inutilmente, em identificar, capturar e classificar o ser humano apenas pela limitadíssima via do biológico.
DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com
Caro João Rego
Li seu artigo, ainda com a cálida lembrança de nosso encontro no lobby de um hotel no Recife. A citação do Hamlet é encantadora e precisa. Encantadora porque a flauta é o instrumento por excelência para por as coisas em pé, quer dizer, nos seus lugares, e precisa porque, ao aludir à voz das siringes, dos faunos – e me vem à lembrança o poema “L’après-midi d’un faune”, de Mallarmé -, presentifica o instrumento por excelência para tocar ao sujeito do inconsciente: a voz. Para ser mais preciso, os significantes os quais, tais as notas musicais, ao passar pelo ouvido do analista (que também faz parte do conceito de inconsciente), mostram-se capazes de dizer do desejo em jogo. Um desejo que por vezes pode ser, digamos, de dominação (para relacionar ao tema de seu artigo). A pulsão de domínio, a “Bemächtigungstrieb”, para dizê-lo na língua de Freud, afinal, é uma das primeiras pulsões a entrarem em cena na constituição do sujeito. Cabe à análise, quero dizer à psicanálise, transformar o esforço em controlar os esfíncteres, quando a educação recebida em casa não foi suficiente, em outra coisa que não o paranoico controle sobre os outros. O controle da química interna do corpo é uma extensão dessa preocupação, uma camisa de força vestida desde o de dentro, vestida internamente, mas com o mesmo efeito paralisante. A oferecida felicidade, proposta pelo fármacos, na maior parte das vezes não passa de propostas de alienação, evitando ao sujeito o confronto consigo mesmo!
Não esqueçamos, contudo, que a música também pode ter um valor hipnótico. E aí, então, tenho de lhe dizer: a psicanálise, como as demais práticas, depende sempre de quem as pratica. Daí a importância da análise do analista.
Agradecido por seu artigo, envio-lhe forte abraço.
Luiz-Olyntho
http://www.tellesdasilva.com
Hamlet sempre põe seus analistas no divã. Muito bom.
Acho que cheguei um pouco mais próximo de Hamlet, no que se refere às famosas protelações de sua vingança, num estudo que transfiro para meu Horácio no romanceamento da peça que fiz, e que consta de minha História Universal da Angústia (Bertrand Brasil, 2005). Shakespeare, como Einsenstein (pelo menos no Couraçado Potekin) construía seus textos de acordo com as regras da Divina Proporção que, em síntese, consiste numa estrutura que se divide mais ou menos na metade, retomando na segunda parte o movimento inicial, mas em sentido contrário. Assim, em 1600, o Bardo fez com que César fosse morto no exato centro da tragédia com seu nome e, exatamente no segundo ato e meio, Marco Antonio faz o discurso que faz de Bruto e Cássio caças, quando até então eram os caçadores. No ano seguinte, Bill sacou que jogara fora bem antes do tempo o grande vilão do ano anterior e, exatamente na metade do Hamlet, em lugar de o príncipe matar o rei, mata Polõnio, “que fizera o papel de César na universidade, onde era morto por Bruto”. Divina Proporção, Número Áureo, só isso.
Amigo João, concordo com a insondabilidade da alma humana, que você comenta com tanta propriedade. Só que vou mais além. Não apenas a ciência médica é impotente para tal sondagem. A própria psicanálise também é, na medida em que formula apenas um conjunto de hipóteses interpretativas, bem estruturadas, é verdade, mas que não podem ser comprovadas pela experimentação. Seria a psicanálise uma ciência, ou apenas uma mitologia, uma das grandes mitologias do século XX, ao lado do “materialismo dialético”?
O que a psicanálise tem produzido mesmo é a riqueza dos psicanalistas. Segundo o jornalista austríaco Karl Kraus, fundador e diretor do jornal “A Tocha” (Die Fackel), “a psicanálise é aquela doença mental que se imagina uma terapia”.
Meus cumprimentos.
Caro João
Ao contrário do que você pretende demonstrar, a fala de Hamlet para os cortesãos que tentavam arrancar o segredo da sua melancolia parece dirigida a um psicanalista e não a um biólogo que estuda o cérebro e a bioquímica das emoções humanas. Não entendi a sua reação contra a neurociência e sua afirmação sobre a prepotência da ciência, nem sei onde você percebe esta atitude da ciência que “tenta nos impor como um saber absoluto sobre o homem” e sua inquietação diante do que considera um “desejo onipotente da ciência em tudo saber e tudo explicar sobre nossa indecifrável humanidade”. Não me parece que a ciência seja isso, embora existam cientistas arrogantes e donos da verdade absoluta. Não a ciência que busca a verdade absoluta, é a religião e alguns pretensos cientistas, muito pelo contrário, a ciência busca sempre se superar, testar e demonstrar a falsidade para abrir novas rotas de conhecimento. E cabe mesmo à ciência é explorar e tentar explicar o que parece indecifrável, de modo que não entendo sua reação a esta tentativa. Suponho que foi isso que fez Freud ao longo de sua vida, tentando compreender e explicar a alma humana, mesmo consciente da complexidade e da singularidade das pessoas. Além disso, João, a biologia e com ela a neurociência tem dado avanços significativos na compreensão dos processos bioquímicos e sua relação com as emoções e as angústias. O que não significa “classificar o ser humano apenas pela limitadíssima via do biológico”. Não conheço muito de biologia e neurociência mas não vejo nenhum cientista tentando explicar o ser humano apenas pela biologia. O curioso é que você, ao contrário, parece desconsiderar ou ignorar os processos biológicos e bioquímicos e que foi, graças a muita pesquisa ao longo dos séculos e, mais recentemente, com apoio de equipamentos avançados, conhecemos muito mais do corpo humano. Desculpe mas o avanço da biologia, da bioquímica e da neurociência foi também graças a uma “vasta formação intelectual” que você parece atribuir como mérito exclusivo a Freud e de Lacan. Mais ainda, a biologia e a neurociência têm trazido muito mais qualidade de vida para os humanos que as teorias dos seus mestres. Nunca li Freud nem Lacan mas já estou ficando com raiva dos dois. E a culpa é sua.
Não resisti a comentar o texto de João, depois da leitura provocativa de Sérgio e, mais discretamente, de Clemente. Os médicos neurologistas, assim como os psiquiatras e outras tantas especialidades, beneficiam-se muito das descobertas científicas. E nós sabemos que hoje a pesquisa médica tem uma simbiose, às vezes quase perversa, com a fabulosa indústria farmacêutica, uma das mais poderosas de nosso capitalismo atual. Porém, mesmo com essa simbiose, essas descobertas recentes foram sem dúvida fundamentais para o bem estar da humanidade. O médico passa seis anos de formação na universidade, mais uns tantos na residência até chegar ao consultório. E os bons médicos (que não são poucos) em geral são humildes para reconhecer o quão pouco ainda se conhece do corpo humano, quando se trata de nosso cérebro. Por isso eu acho de uma pretensão quase religiosa os psicanalistas, que fazem apenas uma “formação” através de seminários, leituras e sua própria análise, arrogarem-se em superioridade em relação a outras formas de amenizar o sofrimento humano.
Caros Clemente, Sérgio e Teresa:
Sinto-me qual aquele lutador de filmes de capa e espada, acuado no último andar da torre do castelo. A minha frente dois espadachins e uma dama, mas também portanto sua arma – aquele punhal estrategicamente escondido sob o vestido -, todos ávidos para que eu pule lá embaixo no poço cheio de crocodilos que circunda o castelo.
Bem, como aqueles seriados antigos, vou deixá-los em suspensão até o meu próximo artigo quando poderei tercer minhas ideias contra as colocações de vocês.
Me esforçarei para que a espera seja recompensadora, para todos.
João Rego
João Espadachim: Espichando um pouco sua imagem, que tem felizmente bons bocados de humor, acho que você está tão encurralado que acrescentar uma estocada seria empurrá-lo de vez para o poço onde os jacarés da neurociência anseiam devorá-lo. Portanto, fico moitando à sombra do castelo sitiado à espera do seu contra-ataque. No mais, é graças a encrencas como esta, que felizmente não provoquei, que Será? justifica seus princípios e sua participação no debate das ideias cada vez mais nulo ou inconsequente. Acho muito saudável esse debate que vocês travam isentos de complacência. Espero que você sobreviva no castelo sitiado. Um abraço, Fernando.
Sérgio e Teresa: nossos pensamentos estão bem afinados. Cumprimentos ao espadachim João, pelo brilhante movimento de defesa.
Esclareço ainda: já li alguma coisa positiva sobre Freud, escrita por gente séria, Carlos Estevam e Sérgio Paulo Rouanet, que considero o melhor pensador brasileiro vivo. De Lacan, não li nada, nem pretendo: é um mistificador. Quem quiser saber porque digo isso, deve ler o segundo capítulo do livro de Alan Sokal e Jean Bricmont “Fashionable Nonsense – Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science”. (Parece que há tradução brasileira sob o título “Imposturas Intelectuais”). Ali se pode ver como o autor tão badalado procura “empulhar” espíritos tímidos com o uso – impróprio e equivocado – de categorias matemáticas para “explicar” fenômenos psiquiátricos.
Clemente: Lembro-me de que falamos sobre Sérgio Paulo Rouanet naquela nossa conversa em Aldeia. Compartilho a admiração que você tem por ele. Frisaria apenas que ele procede a uma leitura radicalmente racionalista de Freud. Nesse sentido, ele vai na contracorrente de quase tudo que ouço e sobretudo leio nos círculos psicanalíticos que conheço.
Caro João,
Não entendi, mas parece que você propõe que a ignorância acerca da anatomia e fisiologia do cérebro são melhores que o conhecimento. A proposta é parar o avanço científico? Apenas porque entender a biologia da mente desmistifica teorias tão poéticas e elegantes, mas que ainda esperam o crivo do método científico após mais de um século? Ah, não! Prefiro entender do ponto de vista evolutivo e genético como chegamos até aqui.
Descobrir, por exemplo, que o medo seja apenas uma química vitoriosa em relação a sujeitos que não temiam e por isso foram vencidos na seleção natural talvez seja menos atraente que o medo heróico de um personagem clássico, enraizado em conflitos infantis. Mas essa a marcha do conhecimento científico, sem positivismo, mas sem preconceito.
joao
Me lembrei com Hamele da narrativa da historia de ULISSES amarrado ao mastro do navio para não ouvir a sedução do canto das sereias o que bem mostra o movimento humano diante das interdições da cultura e da religião.Isidoro Vegh diz que somos ao nascer um software programado pelo Outro para ser cumprido….E corremos para o analista na ilusão de desvenda-lo…arrancar o segredo da nosas melancolias
Esta noite tocarei a flauta de minha própria coluna vertebral.
Ossos canoros? Psicossomática.
Genes egoístas que nos usam para continuar traulitando. Nascidos em dor ou não; boquinhas abertas para sobreviver, sugando. Que belas mães e mucamas de leite! Amá-las-ei para o resto da vida e que os laios vão para as putas que os pariram, pois talvez ainda as amem.
Sugo sofregamente, se não morro e as endorfinas, a cada mamada, ficam com os rabinhos balançado, numa ode à vida. Pulsão de prazer
Cago e me satisfaço. Quem me limpa? Laio, Jocasta ou a mucama? Pouco me importa, permaneço Eros Quando desenvolver minha próstata me lembrarei, em devaneios, até que a arranquem por alto PSA e voltarei a temer a morte, desta feita cientificamente.
Sou corpo, pulsões, cultura, filosofia ou sinfonia? Pouco importa, pois sempre haverá uma coda.
PS: Tentei ler Lacan e não entendi direito. Perguntei a quem entende e fui às enciclopédias virtuais. Ainda tenho dúvidas que, possivelmente, João rego poderá as elucidar em um jantar em Olinda. Gostei de ter lido e perguntado. Ô Clemente, leia antes de não gostar.
A contenda está ficando animada. Vejo alguns possíveis aliados lançando cordas para mim, mas sei que tenho que me virar com minhas próprias linhas.
Trabalharei no artigo este feriado, 1 de maio. Já antecipo o título que irá ordenar minhas ideias: Psicanálise: ciência, arte ou embromação?
Abraços
Amigo David, se você tentou ler Lacan e não entendeu, quem sou eu para me aventurar nessa selva tão intrincada!
De minha parte, lhe sugiro também: leia o capítulo do livro de Sokal e Bricmont que citei, e compreenderá porque eu acho que não vale a pena.
Para acompanhar o debate o autor escreveu a resposta em um novo artigo
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Para acessá-lo, basta clicar no link abaixo
https://revistasera.info/hamlet-psicanalise-a-e-captura-do-sujeito-pela-ciencia-ii-joao-rego/