João Rego

Ofélia, personagem de Hamlet, por John Everett Millais, 1852.

Ofélia, personagem de Hamlet, por John Everett Millais, 1852.

Recife, 21 de abril de 2014.

É muito comum aparecer em revistas (especializadas ou não) entrevistas com neurocientistas e outras espécimes nos comunicando um novo aparelho de alta tecnologia capaz de desvendar os mistérios do homem em seu mais recôndito universo: sua estrutura psíquica.

São milhões de dólares investidos nesta desesperada e inútil tentativa de capturar o humano e suas vicissitudes.

Esta biologização do sujeito certamente tem um fim comercial ou de dominação – sempre ela -, para produzir algo que nos afaste da depressão ou alivie uma angustiazinha aqui, outra acolá. Enfim, se eu sei tudo sobre você, principalmente sobre aquilo ao que você é alienado e determina sua existência, fazendo-o sofrer com isso, tenho a faca o queijo para sobre você impor meu saber que o fará dependente de mim, e pagará por isso.

Sem desconsiderar o evidente apoio das drogas (legais e/ou ilegais) para, em alguns casos, nos ajudarem a lidar com nossas lutas internas diante da vida, me inquieta este desejo onipotente da ciência em tudo saber e tudo explicar sobre nossa indecifrável humanidade. Como também não me convence a Religião que durante séculos impõe a ferro e fogo (literalmente, durante a Santa Inquisição) seu saber, sua visão de mundo que a tudo explica sobre nossas vidas, e, principalmente após o fim da nossa existência.

Freud em 1904 em seu texto “Sobre Psicoterapia” já apontava na direção de ser isto impossível. Cada ser humano – Graças a Deus!-, é um universo único em sua subjetividade e, portanto, inalcançável, mesmo que não tenhamos consciência dessa nossa singularidade.

Diz ele, citando um diálogo entre Hamlet e Rosenkranz e Guildenstern, enviados pelo tio traidor, assassino do pai de Hamlet que casou com a viúva, ainda com o corpo do rei quente.

“O instrumento anímico – aqui alma no sentido do espírito filosófico e não espiritual – não é nada fácil de tocar. Nestes casos, recordo sempre as palavras de um neurótico famoso em todo o mundo, que nunca foi tratado por nenhum médico, pois viveu apenas na imaginação de um poeta. Refiro-me ao príncipe Hamlet da Dinamarca. O rei enviara para junto dele dois cortesãos (Rosenkranz e Guildenstern), a fim de sondá-lo e arrancar-lhe o segredo de sua melancolia. Hamlet os repele. Neste ponto, trazem à cena umas flautas. Hamlet apanha uma e estende-a a um dos importunos, convidando-o a tocá-la. O cortesão se desculpa, alegando completa ignorância daquela arte, e Hamlet exclama: “Que juízo fazes de mim! Queres-me tocar, presumes conhecer meus registros, pretendes arrancar o mais íntimo de meus segredos, fazendo-me emitir desde o mais grave ao mais agudo de meus tons; e não podes fazer soar este pequeno instrumento, capaz de excedentes vozes e de harmonia. Julgas que me tocarás com mais facilidade que a uma flauta? Não, toma-me pelo instrumento que quizeres; por mais que me manejes e te esfalfes não conseguirás tirar de mim o menor som”.(Acto III, cena 2)” Freud in Sobre Psicoterapia (1904)

Para quem conhece um pouco de Freud e principalmente da obra de Lacan, que envolveu o pensamento de Freud com a filosofia das boas ( Hegel, Heidegger e turma) é risível o que a “ciência” com sua prepotência tenta nos impor como um saber absoluto sobre o homem.

Como tentar apreender as razões do desejo humano com uma máquina que mostra –até colorido- as variações das atividades cerebrais do sujeito? O corpo humano é uma pálida expressão, ou caixa de ressonância do desejo, como falta (angústia) que estrutura o sujeito ao inconsciente! E o desejo, assim como o inconsciente, provém do Outro.

Para a Psicanálise somos seres fundados na angústia (um vazio estruturante do sujeito, ou sujeito barrado para Lacan), perpassados pela linguagem e desejante para a morte.

Este sujeito estruturalmente incompleto já está, há muito, identificado pelos poetas, artistas, filósofos e escritores. Sócrates e Shakespeare são exemplos e foram forte influência sobre o pensamento de Freud. Inicialmente, Freud não tinha a preocupação de pensar o ser humano e o social, era pura preocupação científica de investigar as doenças da alma, (e aqui não me refiro a alma no seu conceito espiritual e sim filosófico) foi graças a sua vasta formação intelectual que a psicanálise surgiu, e desde seu início, rompeu para sempre o estreito, empoeirado e pretencioso foco que a ciência tenta, inutilmente, em identificar, capturar e classificar o ser humano apenas pela limitadíssima via do biológico.

 

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com