O livro de José Serra vem somar-se aos de Aldo Arantes (Alma em Fogo) e Fernando Henrique Cardoso (O Improvável Presidente do Brasil), que já tive a oportunidade de comentar nesta revista eletrônica, contribuindo para a rememoração e a visão crítica da longa noite ditatorial em que estivemos mergulhados, por mais de vinte anos. E, sem deslustre para os relatos memorialísticos aqui citados, e tantos outros, mais ou menos abrangentes, oferece um depoimento abalizado, preciso, desapaixonado e revelador desse período sombrio da nossa história. A apresentação, que vale como uma chancela de qualidade para o trabalho, é de Ferreira Gullar, a meu modesto juízo, e ao lado de Sérgio Paulo Rouanet, um dos maiores pensadores brasileiros: lúcido, articulado e consistente.
A leitura do livro consolidou em meu espírito impressão já antiga: seu autor foi um dos candidatos mais habilitados para ocupar a presidência da República que já tivemos. E não soubemos aproveitá-lo. Filho de imigrantes pobres, líder estudantil, curso de engenharia interrompido, duas vezes exilado, doutorado em economia feito em tempo recorde, brilhante deputado constituinte, excelente ministro da saúde, governador do Estado mais próspero do país. Apesar de tudo isso, têm-lhe sido atribuídas pechas infamantes e absurdas, como a de “inimigo do Nordeste”, que, anos atrás, empenhei-me em desmentir (“Serra e o Nordeste”, JC, 05.03.2002). Agora, quando a dívida que nós brasileiros temos com ele já não pode ser paga – seu tempo parece ter passado – sinto-me à vontade para levantar, incidentalmente, essa questão.
Mas falemos das revelações do livro. O fato de que Jango previa a sua queda e resignava-se, talvez na esperança de um retorno como o de Getúlio Vargas em 1950, e a insensatez como a esquerda aterrorizava os conservadores, ilustrada pelo mapa do Brasil pontilhado de tachinhas vermelhas, como um exército de ocupação, manipuladas pelo deputado Neiva Moreira, são exemplos significativos. O detalhe de que foi o General Carlos Prats, ministro do exército chileno, quem indicou Pinochet para substituí-lo, como homem de sua confiança, e o mesmo Pinochet, após levar Allende ao suicídio e matar milhares de chilenos, mandou assassinar Prats, em seu exílio na Argentina, é outra informação impactante. A narrativa desenvolve-se sem emocionalismo, de forma clara, incisiva, crítica, envolvendo, a cada página, no Chile, na Argentina, nos Estados Unidos, em Londres ou Paris, personagens notórios de nossa história recente, alguns deles amigos meus das velhas lutas estudantis.
No entanto, como de hábito, não venho aqui apenas para louvações. As referências feitas no livro às forças políticas atuantes no movimento estudantil, e no Movimento de Cultura Popular, o MCP do Recife, merecem retoques. Em primeiro lugar, não é exato que a Ação Popular (AP) tenha sido a tendência dominante no meio universitário, pelo menos até 1964. Na gestão Aldo Arantes (1961-1962), numa diretoria de dez postos da UNE, éramos cinco do PCB contra dois da Juventude Universitária Católica (JUC), “convertida” na AP justamente em 1962. Aconteceu apenas que atribuíamos tanta importância à política de “frente única” que o comando da chapa deixava de ser relevante para nós. Por outro lado, a observação de que atribuíamos um papel “demiúrgico” à burguesia nacional – na verdade, uma simples aliada temporária na fase “anti-imperialista e antifeudal” da “revolução” brasileira – não nos faz justiça. É certo que as “contradições” entre capitalistas brasileiros e estrangeiros não eram tão fortes como imaginávamos, salvo em casos especiais como os de José Ermírio de Morais e Herberto Ramos. Sempre houve e haverá lugar para composições. Isso, porém, é outra história.
Equívoco maior, contudo, está em minimizar o papel da juventude comunista no MCP, em favor da JUC-AP. Reafirmo o que já proclamei aqui (“A Saga do MCP”): o programa de alfabetização de adultos e o teatro “de conscientização” do MCP foram tocados maciçamente por jovens militantes do “Partidão”. Que me façam coro figuras hoje respeitáveis como Liana Aureliano, professora aposentada da Universidade de Campinas, Nelson Rosas Ribeiro, professor emérito da UFPB, o cineasta Eduardo Coutinho, os atores Nelson Xavier e José Wilker, a cantora Teca Calasans, entre outros.
No mais, é lermos todos o livro de Serra, em qualquer destas noites. Cinquenta anos é um bom tempo para a Verdade e a Reflexão.
Clemente Rosas é consultor de empresas
e companheiro rosa! so o seu nome, porque na gestão desse ex foi so espinho e ainda chamou o povo de vagabundo.
Nelson F. Marinho:
Quem “teria chamado” o povo de vagabundo foi Fernando Henrique Cardoso, não o José Serra. Na verdade, a afirmação do então presidente FHC foi bem diferente, tendo sido maliciosamente distorcida por seus adversários. O que ele fez foi classificar como tais os servidores públicos que, valendo-se de uma série de artifícios legais, aposentam-se prematuramente, alguns até antes dos cinquenta anos. E eu, na qualidade de servidor público na maior parte da minha vida, tendo-me aposentado aos 61 anos, quando poderia tê-lo feito pelo menos cinco anos antes, posso afirmar: concordo com ele.
Meu conselho: procure informar-se melhor, antes de emitir seus conceitos. E, por gentileza e cortesia para com os seus interlocutores, dê preferência a fatos e razões, em lugar de meras impressões.