João Rego

Recebi, recentemente, um pedido de uma amiga psicanalista sobre uma dica de livro de política. A razão desta consulta— sabia ela que tenho mestrado em ciência política—, era sua preocupação, junto com vários colegas de seu grupo, em marcar posição contra uma onda internacional de intervenção do Estado sobre a formação e a prática da psicanálise. Na França, como o Estado há muito subsidia a prática clínica para quem não tinha dinheiro, está se tornando mais uma ação de assistência social do que análise. Na Itália, tem psicanalista preso acusado de ter atendido sem ter formação em psicologia ou psiquiatria.

Imediatamente me veio à mente a suposta frase de Freud, quando entrava de navio em Nova York, ao lado de Gustav Young:

— Eles não sabem, mas vim lhes trazer a peste.

O que Freud queria dizer com isto? Em seu Mal Estar na Civilização, a tese central é de um permanente e indissolúvel conflito entre a barbárie e a civilização. Este conflito não flutua etereamente na história ou no “ser coletivo” chamada sociedade. Ele reside no sujeito, dentro de cada um de nós. Para Freud, todo o processo civilizatório é um belo e sangrento esforço milenar de tentar conter essa barbárie que existe dentro de nós e que se reproduz de forma latente, em cada ser humano que nasce.

O Estado é uma das mais importantes conquistas deste esforço, pois com ele se instaura a Lei. É esta Lei que, desde a infância, através das figuras paternas e seus substitutos, nos formamos como cidadãos produtivos, obedientes à ela e, em alguns casos, temente a Deus. O problema é que esta operação de aceder à civilização não se dá nunca de forma completa, posto que nosso principal combustível de vida continua sendo as forças pulsionais primitivas que nos constituem. Estas são incessantes em ter seus desejos imediatamente realizados, que podem ser de ordem violenta contra um outro ameaçador, fóbica no sentido de fuga de uma ameaça, ou de simples excreção biológica.

Vivemos em sociedade porque ao longo da história da humanidade aprendemos a recalcar e/ou sublimar estas pulsões. Porém, Freud logo descobriu que as doenças da alma (aqui no sentido filosófico e não religioso) eram, invariavelmente, resultados do recalque destas forças pulsionais.

Ou seja, apesar de enormes ganhos, ao longo de um complexo e rico processo civilizatório onde o Estado, a arte, a música, a religião, a ciência e a filosofia são valiosos fulcros deste processo, ainda assim, o homem está permanentemente, como uma mola pressionada, submetido ao domínio das forças primitivas, atávicas.

A neurose, portanto, é um preço que se paga por existirmos em sociedade. Assim como não há a possibilidade de se retroceder na história abolindo o Estado e a Lei, não existe a opção de se viver fora da sociedade, como um bom selvagem rousseauniano.

E a psicanálise? O que tem a ver com isto?

A função do analista é, através da intervenção na escuta do discurso do analisante, dar conta deste preço que se paga por estar em sociedade e ser um sujeito destinado para a morte.

O que faz a prática clínica da Psicanálise é emular, mesmo que de forma temporária e tosca, através da linguagem, este “resto pulsional” que faz os amantes morrerem pelos seus objetos perdidos; os guerreiros matarem pelos seus ideais e os poetas e artistas criarem para dar conta de uma inexplicável e aterradora angústia do ser. É como resultante desta experiência única e singular – a relação analítica— que se processa, por meio do discurso do analisante, “a transformação radical do sujeito” (Lacan)

Creio que não foi por coincidência que ela surgiu da experiência individual de Freud — um destes gigantes intelectuais da humanidade — e teve sua transmissão iniciada nas reuniões das quartas na casa de Freud e não na Universidade.

A “peste” é este saber que desconstrói uma visão simplória de que a humanidade caminha célere e de forma linear, em um processo evolutivo, tecnologicamente irreversível e harmonioso.

Assim, a formação do analista não passa jamais pela academia e sim pelo clássico tripé da análise pessoal – este, de longe, o mais importante—; da supervisão de um analista mais experiente, quando se começa a atender; e do estudo interminável nas instituições— de vários saberes que ajudem a elucidar o homem e suas vicissitudes.

Portanto, ter o Estado regulando a prática e a transmissão da psicanálise é o mesmo que matar a necessária liberdade intelectual de um saber que, como a peste, nasceu para inquietar mais do que aquietar— o ser e sua civilização.

Não creio que haja uma solução pacífica para este conflito do Estado contra a psicanálise. Esta é uma luta permanente dos psicanalistas e de suas instituições. Desconfiem da instituição que está subserviente ao Estado.

Trago, apenas para atenuar tão trágica perspectiva do humano, uma frase de Freud, em carta para seu colega Oskar Pfister, pastor e psicanalista suíço:

— A psicanálise é apenas uma conversa de comadres sobre dois temas simples e recorrentes: a morte e a sexualidade.

Apenas isto.

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Setembro de 2014.